Populismo

O Populismo é….

Desafiámos os alunos de Direito Constitucional (1.º ano da licenciatura em Direito) a “investigar” o conceito de populismo, escolhendo um artigo de opinião ou uma notícia de um jornal ou revista e comentá-lo, recorrendo a leituras da doutrina jurídica e da ciência política….. apresentamos agora uma selecção dos resultados obtidos…


Rodrigo Manuel Martins Lemos

Artigo de opinião (The Economist) “What is populism?” publicado em 19.12.2016

“Populists can be everything from militarists to libertarians. So what does the word actually mean?

Donald Trump, the populist American president-elect, wants to deport undocumented immigrants. Podemos, the populist Spanish party, wants to give immigrants voting rights. Geert Wilders, the populist Dutch politician, wants to eliminate hate-speech laws. Jaroslaw Kaczynski, the populist Polish politician, pushed for a law making it illegal to use the phrase “Polish death camps”. Evo Morales, Bolivia’s populist president, has expanded indigenous farmers’ rights to grow coca. Rodrigo Duterte, the Philippines’ populist president, has ordered his police to execute suspected drug dealers. Populists may be militarists, pacifists, admirers of Che Guevara or of Ayn Rand; they may be tree-hugging pipeline opponents or drill-baby-drill climate-change deniers. What makes them all “populists”, and does the word actually mean anything?

Widespread use of the term “populism” dates to the 1890s, when America’s Populist movement pitted rural populations and the Democratic Party against the more urban Republicans. (It was also used to refer to Russia’s 19th-century narodnichestvo movement, which largely comprised self-hating intellectuals with a crush on the peasantry.) In the 1950s academics and journalists began applying it more broadly to describe everything from fascist and communist movements in Europe to America’s anti-communist McCarthyites and Argentina’s Peronistas. As Benjamin Moffitt explains in his book “The Global Rise of Populism”, a conference at the London School of Economics in 1967 agreed that the term, while useful, was too mushy to be tied down to a single description. Some scholars linked it to frustration over declines in status or welfare, some to nationalist nostalgia. Others saw it as more of a political strategy in which a charismatic leader appeals to the masses while sweeping aside institutions (though not all populist movements have such a leader). Despite its fuzziness, the term’s use has grown.

In 2004, Cas Mudde, a political scientist at the University of Georgia, offered a definition that has become increasingly influential. In his view populism is a “thin ideology”, one that merely sets up a framework: that of a pure people versus a corrupt elite. (He contrasts it with pluralism, which accepts the legitimacy of many different groups.) This thin ideology can be attached to all sorts of “thick” ideologies with more moving parts, such as socialism, nationalism, anti-imperialism or racism, in order to explain the world and justify specific agendas. Poland’s Mr Kaczynski, a religious-nationalist populist, pushes for a Catholic takeover of his country’s institutions from elite secular liberals. The Dutch Mr Wilders, a secular-nationalist populist, demands a crackdown on Islam (in defence of gay rights) and reviles the multicultural elite. Spain’s Podemos, an anarchist-socialist populist party, pushes to seize vacant buildings owned by banks and distribute them to the poor, and attacks “la casta” (the elite caste).

This “thin ideology” definition of populism seems apt in Britain, where Brexiteers denounce experts, refer to themselves as “the people” and boast of having “smashed the elite”. Indeed, Brexit seems to lack a unified “thick ideology”: Brexiteers have different attitudes to trade, race, government spending and almost everything else. But other scholars feel that the thin-ideology definition fails to capture some dimensions. Jan-Werner Müller, a political scientist at Princeton University, thinks populists are defined by their claim that they alone represent the people, and that all others are illegitimate. And there are important distinctions within the category, such as that between inclusive and exclusive varieties. Exclusive populism focuses on shutting out stigmatised groups (refugees, Roma), and is more common in Europe. Inclusive populism demands that politics be opened up to stigmatised groups (the poor, minorities), and is more common in Latin America. Mr Mudde argues that while most writers deplore populism, its upside lies in forcing elites to discuss issues they prefer to ignore. But populism’s belief that the people are always right is bad news for two elements of liberal democracy: the rights of minorities and the rule of law.”

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Comentário:

Atualmente, o termo populismo é usado com muita frequência nos media e na política com sentido pejorativo, aplicado a todos os dirigentes que apelem às emoções, sem prejuízo de, em alguns casos, as mesmas também poderem ser utilizadas sem associação ao populismo. O populismo considera que o povo tem uma opinião uniforme, contrastando assim com a ideia democrática de diversidade de opiniões. O populismo de direita, o mais comum na Europa, pensa que a xenofobia resguarda a identidade nacional, defende o etnocentrismo e o laissez-faire, um povo homogéneo contra imigrantes, refugiados, entre outros; e o de esquerda, mais comum na América Latina, defende que os valores identitários do passado é que norteiam o futuro. O povo é mais tocado pelos aspetos emocionais do que pelos racionais, é valorizado o pathos do povo, ou seja, as emoções, de afeto ou repulsa e são usados argumentos ad populum. As calamidades suscitam emoções que levam o populismo a reativar lamentos em vez de ativar ações que evitem sofrimentos.

O populismo europeu surge na Escandinávia nos anos 70. Nas últimas três décadas, o populismo emergiu por toda a Europa e nalguns países já chegou ao poder, como no Reino Unido, com o ”Brexit”. Nos últimos anos, com as transformações sócio-económicas, políticas de austeridade, atentados terroristas cometidos por muçulmanos, chegada de refugiados e imigrantes (o que faz com que alguns pensem que os seus empregos estão em risco), houve um reaparecimento do populismo e o aparecimento de muitos partidos populistas de extrema-direita na Europa, onde temos como principais exemplos a Liga Norte Italiana; o Fidesz na Hungria (o partido do atual primeiro ministro Viktor Orbán); a Frente Nacional Francesa, cuja líder é a candidata à presidência da República Francesa nas eleições de 2012 e 2017, Marine Le Pen; o Partido do Povo suíço; o Partido da Liberdade austríaco; o Partido dos Verdadeiros Finlandeses; o Partido Lei e Justiça (PiS), ao qual pertence o presidente polaco, Andrzej Duda; e o atual presidente da Turquia Recep Tayyip Erdoğan. Estes partidos defendem ideais anti-imigração, antiUE, etc. A popularidade de partidos e movimentos populistas hoje reflete a crise da democracia representativa.

O populismo é um conceito muito fragmentário, visto que está presente tanto na direita como na esquerda e em várias épocas históricas: o Partido Populista na América do Norte no final do século XIX e inícios do século XX; o narodniki russo no mesmo período; a ideologia völkisch do romantismo alemão do século XIX; o populismo do século XX, como, por exemplo, o agrarismo na Europa no período entre guerras; o populismo dos fascistas em Itália e nazis na Alemanha e o peronismo na Argentina após a Segunda Guerra Mundial. Nos dias de hoje, o populismo abrange um espetro político desde a esquerda de Nicolas Maduro na Venezuela até à já referida extrema direita na Europa: Haider, na Áustria; Le Pen, em França; Orbán, na Hungria; Siderov, na Bulgária,…). A globalização, o desenvolvimento económico desfavorável e a crescente diversidade cultural, entre outros, levam à política populista. A nova onda populista na Europa nasce da desconfiança na democracia liberal e dos seus valores – a tolerância das minorias, a proteção dos direitos individuais…

Exemplos

O populismo surge nos Estados Unidos com o Partido Popular (People’s Party), fundado em 1891 e dissolvido em 1908, que defendia um populismo agrário. Na Rússia, aparece também no século XIX o populismo socialista agrário, narodnichestvo [Paul TAGGART, 2000, p. 25-45, ibid p. 46-58]. Este populismo primitivo é totalmente diferente do atual, pois tem uma vertente fortemente agrária. O Crédito Social que surgiu na província de Alberta, no Canadá, nos anos 30, também é um exemplo deste populismo.

O novo populismo surge na Europa Ocidental, no final do século XX, presente em partidos de extrema-direita, conservadores, liberais, democratas cristãos, neo-fascistas e neo-nazis [Paul TAGGART, 2000, p. 73-74].

Em Itália, este novo populismo manifestou-se com o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, mas também com o MoVimento 5 Estrelas que, nas eleições legislativas de 2013, se tornou no terceiro partido mais importante do país. O M5S do comediante Beppe Grillo, tem como características a retórica populista cidadão/elite e a democracia participativa e direta, querendo construir uma nova classe política sem intermediários. Como afirma Goffredo Adinolfi, “a ideia central é o restabelecimento da relação entre cidadão e Estado de uma maneira direta e sem a participação de corpos intermédios” (Adinolfi, 2016, p. 75). Na campanha presidencial dos Estados Unidos em 2016 estiveram como candidatos um populista de direita, Donald Trump, que evoca problemas como imigração, políticas comerciais, gastos e terrorismo, e um de esquerda, Bernie Sanders [Michael, 2016, p. 23-38 e Botelho, 2016, p. 43-56].

Na América Latina, os políticos populistas dão muita importância à liderança. O populismo está presente como descrição de vários regimes, fazendo parte do tipo de política latino-americana, e também é usado para descrever as ideias e história dos principais líderes que eram centrais nestes regimes. Na Europa, o populismo refere-se à anti-imigração e xenofobia, ao contrário da América Latina, onde o termo se refere ao clientelismo e à má gestão económica. O populismo latino-americano tem uma grande influência do peronismo, os ideais do argentino Juan Perón, que nacionalizou empresas e aumentou os salários dos funcionários públicos, mas deixando aumentar a dívida externa e as dificuldades económicas do país. Criou um partido único peronista, que continuou com a sua mulher, Eva Perón. Perón foi influenciado pelo pensamento proto-populista de Getúlio Vargas, chefe do governo provisório do Brasil em 1930 que, após um golpe militar, se tornou presidente a partir de 1934. O populismo é uma resposta específica a uma crise geral que emergiu da exaustão de uma fase de dependência de outros países para o desenvolvimento. O objetivo do populismo na América Latina era a independência económica, o fim da estruturação semi-feudal, a promoção de justiça social, apoiando-se em liderança, centralização, dinheiro e retribuição (James Malloy, 1977, p. 9, 11-15 apud Taggart, 2000, p. 59-66). O populismo da América Latina é baseado nos ideais bolivarianos, de Simón Bolívar, com Hugo Chávez e, posteriormente, Nicolas Maduro, na Venezuela; Evo Morales na Bolívia e, até 2015, os Kirchner na Argentina. O populismo latino-americano pode ser explicado pela rápida e desigual modernização da sociedade e pela sua dependência das economias centrais, que resultou num forte dualismo estrutural entre um setor dominante, orientado para a economia de exportação e um setor doméstico dominado. O populismo associava-se a este último e procurava especialmente eliminar as relações de dependência para permitir o desenvolvimento do mercado interno, particularmente no setor industrial, com uma margem de intervenção pré-estabelecida por parte do Estado [Basset e Launay, 2013, p. 140-164].

O populismo não está presente apenas na Europa e na América. Os excessos da globalização, os regimes híbridos e a falta de credibilidade dos projetos pan-arabistas e pan-islâmicos no mundo muçulmano fazem com que surjam outras opções como o “populismo islâmico”. Segundo Alberto Priego, há várias características do populismo islâmico: «a existência de elementos populistas anteriores nos discursos das “elites corruptas” contra os quais estão agindo, a preeminência de elementos morais como constituintes subjetivos da vontade geral, um modelo carismático de liderança que seria inspirado pela idealização de figuras histórico-religiosas, a umma como uma comunidade de “puros” sobre a qual desenvolver o conceito de “pessoas”, e a mobilização de baixo para cima (bottom-up) baseada na existência de um movimento social e islâmico» [Priego, 2018, p. 164]. O populismo islâmico foi construído como uma resposta aos regimes populistas anteriores. Na mente islâmica, alguns governos populistas ditatoriais do passado, como a Turquia kemalista e o Irão de Reza Pahlevi, não seriam moralmente puros por serem “intoxicados pelo Ocidente” (Westoxicated) (Sayyid, 2015, p. 119 apud Priego, 2018). Ao contrário dos movimentos radicais islâmicos, que defendem revoluções, o populismo islâmico defende a transformação do sistema. O islamismo baseia-se na ideia de que os indivíduos podem ser separados da sociedade ignorante e corrupta (jahili) a que pertencem. Uma vez separados, esses indivíduos seriam parte da comunidade moral à qual somente os puros pertencem (Roy, 1994, p. 69 apud Priego, 2018). No populismo islâmico, a figura do líder torna-se uma referência moral a serviço do coletivo, ao contrário das sociedades ocidentais, que não gostam do conceito de liderança, de apenas um líder.

O antigo presidente do Irão, Mahmoud Ahmadinejad, era populista. Até a própria Revolução Iraniana de 1979, que fez com que o Irão passasse de uma monarquia pró-ocidental comandada pelo xá Mohammed Reza Pahlevi para uma república islâmica teocrática, teve como base o populismo, visto que o aiatolá Khomeini também apelou às emoções do povo. Esta revolução só ganhou força devido às desigualdades na década de 70 (Maloney, 2015, p. 317). Podemos fazer um paralelismo entre o populismo europeu atual e o populismo da revolução iraniana: no primeiro, há a ideia de que os refugiados e imigrantes dos países árabes e da África subsaariana fizeram com que começasse a surgir insegurança dentre a população europeia; já no segundo, a ideia de que durante a monarquia do xá Reza Pahlevi os britânicos e os americanos tomavam conta da principal matéria-prima do Irão, o petróleo, cuja maior exploradora era a APOP (Anglo-Persian Oil Company), e o facto de o xá ter uma vida de luxo, a população mais rica ter uma vida ocidental e a classe baixa viver na pobreza, provocou um grande descontentamento das classes média e baixa, visto que o Irão estava a perder a sua cultura, apenas valorizando o mundo ocidental, fez esta revolução surgir. O próprio Ruhollah Khomeini falou para o povo persa, afirmando que os EUA eram a causa da pobreza e da perda da identidade persa, fazendo com que a população ganhasse ódio pelos Estados Unidos e visse num governo teocrático a solução para as desigualdades sociais e para a perda da identidade nacional. A Revolução Islâmica teve três objetivos: democracia, independência nacional e justiça social islâmica. O presidente Mahmoud Ahmadinejad sucedeu, em 2005, ao presidente Khatami. Este último, tal como o atual presidente Hassan Rouhani, estava a fazer com que o Irão se voltasse de novo para o Ocidente. Já Ahmadinejad, aquando da sua candidatura à presidência, afirmou que iria acabar com a corrupção e propagou novamente o anti-ocidentalismo, invocando ser esta a única maneira de fazer o país crescer economicamente. Tirou partido da frustração dos iranianos com o seu padrão de vida e poder económico para implementar um governo conservador e defensor da teocracia, prometendo melhorias a esses níveis, que não apareceram (Maloney, 2015, p. 341). Na era Ahmadinejad (2005-2013), houve um renascimento da Guarda Revolucionária, um crescente investimento em armamento e planos nucleares e um reaparecimento dos ideais anti-EUA e anti-sionismo (a ideia de Israel como terra prometida do povo judeu). O caráter revolucionário e conservador de Ahmadinejad, protegido pelo aiatolá Khamenei, foi vital para a vitória da sua candidatura à presidência.

Já na África Subsaariana, o populismo é raro, pois muitos países ainda são autoritários e ditatoriais, mas está presente em duas formas, o populismo de identidade (tribal) e o populismo de pobreza, segundo Emmanuel Banywesize [ Banywesize, 2013).

Sergiu MiȘcoiu destaca dois tipos de populismo (histórico e avançado) e indica várias características (MiȘcoiu, 2013, p. 17):

O conceito de populismo em diversos autores

Definição de Paul Taggart

Nesta primeira definição de populismo temos presente um conceito estranho que depende do local, da época histórica e do conjunto de pessoas, entre outros fatores, para produzir efeitos. Surge em épocas de descontentamento e é a base das revoluções. É esta a ideia de Paul Taggart. O autor refere o populismo como “a chameleon, adopting the colours of its environment” (Taggart, 2000, p. 2), uma ótima metáfora que ilustra a sua ideia de populismo como conceito camaleónico. É algo que aparece na política numa época de descontentamento e instabilidade. Trata-se de um conceito que defende a homogeneidade de uma população. Na sua obra Populism, Paul Taggart apresenta várias definições de populismo segundo alguns autores, dos quais destaco Edward Shils, que identifica o populismo como uma relação entre “massas e elites”, existindo onde quer que haja uma ideologia de ressentimento popular contra a ordem imposta pela sociedade por uma classe dominante diferenciada que tem ter o monopólio do poder, da propriedade, da educação e da cultura (Edward Shils, 1956, p. 101-103 apud Taggart, 2000). O populismo é seguido por incultos. Destaco também Ernesto Laclau, que afirma que o populismo é uma ideologia de elites e é utilizado quando uma parte desta classe não consegue estabelecer hegemonia e por isso faz um apelo direto às massas (Ernesto Laclau, 1977, p. 173 apud Taggart, 2000). Finalmente, destaco também Margaret Canovan, que distingue dois tipos principais de populismo: o populismo agrário e o populismo político. Os populistas glorificam o povo. Contudo, o populismo relaciona-se também com certas classes. Tomemos o exemplo do populismo latino-americano, que se relaciona com os trabalhadores urbanos; o populismo do campesinato russo, dos agricultores norte-americanos, dos trabalhadores urbanos do setor privado na Europa Ocidental… Cada populismo tem uma classe-alvo, mas tem como ideia central o povo, visto este ser maleável e flexível, mas também extenso. O populismo marginaliza as minorias: na sociedade ideal pensada pelo populismo, ao povo só pertence a maioria, os ocupantes da “heartland” (Taggart, 2000, p. 95), uma conceção que não passa de um imaginário populista, uma utopia. Está inerente uma ideia de singularidade e homogeneidade, na qual a cada “heartland” corresponde apenas um só povo, contrariando a ideia de diversidade cultural . O populismo é um fenómeno efémero, visto que a relação entre este e as instituições é problemática. A liderança populista normalmente combina autoritarismo e carisma, sendo este último um aspeto essencial. A democracia direta, que defende um contacto direto com a população, relaciona-se fortemente com o populismo, mas para Paul Taggart não é um sinónimo. O populismo é, portanto, um conceito fragmentário, na opinião de Taggart. A principal característica do populismo é a sua hostilidade em relação à democracia representativa, que é vista como uma forma de roubar o poder ao povo.

Definição de Jan-Werner Müller

Para Jan-Werner Müller, o populismo é uma forma debilitada de democracia que promete viver de acordo com os mais altos ideais democráticos. É uma forma de política de identidade, um perigo para a democracia, que defende um povo único, autêntico e homogéneo — está presente a ideia de antipluralismo. Um populista tende primeiramente a apropriar-se do Estado: tomemos o exemplo do atual presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdoğan, que aumentou o seu poder, de Viktor Orbán, que transformou a administração pública húngara e do partido polaco PiS, de Jarosław Kaczyński, contra a independência dos tribunais . Em segundo lugar, os populistas dedicam-se a um “clientelismo de massa” (Müller, 2017, p. 64), de onde se destaca a troca de favores materiais e imateriais da elite populista para o suporte político da população, recorrendo a argumentos falaciosos ad populum, por outras palavras, ao apelo à multidão. Há, assim, um antielitismo. Surge também um legalismo discriminatório, no qual só uma parte da população tem total proteção da lei. Existe ainda um leve culto de personalidade, tomemos o exemplo de Erdoğan: tanto em espaços interiores como exteriores, por toda a Turquia, aparecem retratos do atual presidente e de Atatürk, num país que é atualmente democrático (não se podendo comparar com o culto de personalidade presente na China de Mao, na Coreia do Norte e no Irão, mas, ainda assim, é um retrocesso na democracia turca), sendo que o próprio Erdoğan se autodeclarou Milletin Adamı (ou seja, “Homem da Nação”, uma certa semelhança com a alcunha de Mustafa Kemal, “Atatürk”, que por sua vez significa “pai dos turcos”). O poder populista tem também outra característica: é rígido com as organizações não-governamentais que o criticam. Os atuais governos da Polónia do PiS, da Hungria de Viktor Orbán e da Turquia de Erdoğan são “democracias iliberais” (Müller, 2017, p. 68-69), um termo que surgiu nos anos 90 como regimes que realizavam eleições, mas não observaram o estado de direito e violavam o sistema de pesos e contrapesos. O populismo é, assim, uma ameaça à democracia e ao liberalismo. “O que importa a um populista não é tanto o produto de um processo real de formação da vontade ou de um bem comum compreensível para qualquer pessoa dotada de senso comum, mas sim uma representação simbólica do “povo verdadeiro” a partir da qual a política correta é então deduzida. (…) Os populistas podem sempre opor o “povo verdadeiro” ou a “maioria silenciosa” aos representantes eleitos e ao resultado oficial de uma votação.” (Müller, 2017, p. 132).

Definição de Cas Mudde

Cas Mudde concebe o populismo como “uma ideologia que considera a sociedade separada em dois grupos homogéneos e antagónicos, o “povo puro” e a “elite corrupta”, apontando que a política deveria ser uma expressão da volonté générale (vontade geral) do povo” (Mudde, 2004, p. 543). Esta divisão adapta-se muito bem à “divisão tradicional que os islamistas fazem entre impuros (kafir) e virtuosos (anbiyaa). Entre os últimos, apenas os mensageiros de Deus (rasul) alcançam o mais alto grau de perfeição, porque são dotados de uma série de qualidades como inocência (ismat), confiança de Deus (imanat), inteligência (fitamat), sinceridade, (sidiq) e o cumprimento dos preceitos divinos (tablig)” (Priego, 2018, 167). Os aspetos principais do populismo são, primeiro, a importância do “povo” e a sua soberania, e segundo, o antagonismo entre esse “povo” e o “outro”, a elite numa democracia representativa, imigrantes, refugiados,… Há um apelo ao “povo” e uma denúncia da “elite”. Está sempre presente uma subserviência e uma crítica ao establishment. Para Mudde, o populismo é uma “ideologia de baixa intensidade” (Mudde, 2017, p. 18), visto que por si só não é nada, necessita de outra ideologia ligada (fascismo, socialismo, comunismo) para resultar, o que faz com que seja um fenómeno variado e temporário, pois, caso seja bem sucedido, é a ideologia ligada que se sobrepõe. Para Mudde, o populismo distingue-se do clientelismo por ser uma ideologia, ao contrário do clientelismo, que é uma estratégia, nos quais os eleitores têm benesses em troca de apoiarem o partido ou o político. O populismo apoia-se em três pilares: o povo, a elite e a vontade geral: é o povo que dá o poder ao populismo. O líder forte populista é apoiado com base no seu carisma e não no seu programa eleitoral , é uma liderança personalista. Há duas interpretações do termo populismo. A primeira refere-se à política do Stammtisch, um discurso altamente emocional e simplista dirigido ao povo. A segunda refere-se a políticas oportunistas com o objetivo de agradar o povo e ter o seu apoio, em vez destes decidirem racionalmente. Para este autor, o termo “populismo” é demasiado vago, aplicando-se a todos os políticos, e é usado para denunciar adversários políticos. Mudde distingue algumas abordagens do populismo, das quais destaco a abordagem socioeconómica, uma mais recente e outra final (presente na América Latina nas últimas duas décadas do século passado), que caracteriza o populismo como um tipo de política económica caracterizada “por uma despesa massiva financiada pela dívida externa e (…) pela hiperinflação e a implementação de um severo ajustamento económico” (Mudde, 2017, p. 16). A outra abordagem considera o populismo como uma “estratégia política empregada por um tipo específico de líder que procura governar recorrendo ao apoio direto e não mediado das bases.” (Mudde, 2017, p. 16). Por fim, a última abordagem aponta o populismo como um movimento de massas por parte dos políticos e dos partidos. Mas o populismo não tem um caráter apenas negativo pois, para este cientista político, pode tanto ameaçar como corrigir a democracia. Como efeitos positivos do populismo temos o facto deste poder dar voz a grupos não representados e integrá-los politicamente e aumentar a responsabilização democrática, dando poder de participação ao povo. Os efeitos negativos são o predomínio da maioria em detrimento das minorias, causa instabilidade política, desrespeito aos direitos fundamentais… O populismo pode ter impacto tanto na democratização como na desdemocratização . Na primeira, a influência do populismo nota-se em três fases: na liberalização (contra um regime autoritário, o que aconteceu na Europa comunista); na transição democrática; e na sua consolidação. Já na segunda, destacam-se três fases: a erosão democrática (com mudanças graduais como a não-proteção de direitos fundamentais, a limitação da independência dos tribunais, o desrespeito pelo princípio da separação de poderes); a rutura democrática (evoluindo para um autoritarismo); e a repressão. A estratégia de mobilização das massas do líder tem de apelar diretamente às massas por legitimidade, o que implica um tipo de liderança que depende ou é facilmente adaptável a um ambiente eleitoral, um papel importante nos media e políticas demagógicas, notadamente apelos xenófobos ou políticas económicas irresponsáveis; e mecanismos para a democracia direta, tais como estruturas participativas locais ou referendos, destinados a estimular e mobilizar a população. O populismo promove uma visão antagónica simplificada da sociedade, na qual o povo governado é traído por uma classe dominante desprendida. Também promove a possibilidade de restabelecer o equilíbrio entre a maioria governada e a minoria dominante, fortalecendo-a. Como tal, a sacralização do povo torna-se um instrumento na luta contra as elites corruptas. O líder populista evoca a sacralização do povo, o estadismo, a liderança personalizada e fé no líder, a xenofobia e o racismo, a imagem de uma sociedade orgânica, isto é, económica, social e cultural, o uso intensivo de teorias da conspiração e a invocação do apocalíptico e a afinidade com a religião e uma visão nostálgica do passado, anti-elitismo e anti-establishment . Segundo Mudde, três elementos centrais caracterizam a direita radical populista: nativismo, autoritarismo e populismo. De acordo com o “nativismo”, elementos não-nativos, tanto pessoas como ideias, são fundamentalmente ameaçadores ao estado-nação homogéneo prometido pelos populistas da extrema-direita.

Definição de Beata Ociepka

Em muitos países, o populismo reflete uma definição de identidade nacionalista, em oposição ao “outro”. A identidade nacional é uma forma de identidade coletiva, baseada no sentimento de comunidade. Segundo a polaca Beata Ociepka, algumas pessoas vêem na União Europeia e nos imigrantes e refugiados uma ameaça à sua identidade nacional, o que explica que muitos populistas europeus sejam eurocéticos . A fragmentação da cultura e o multiculturalismo contribuíram para a popularidade de movimentos populistas, sendo este fenómeno uma resposta à globalização. Para Ociepka, o populismo é uma atividade política presente em quase todas as partes do espetro político democrático nos sistemas democráticos contemporâneos da Europa. Através dos media é usada uma retórica emocional. O populismo tornou-se uma parte essencial do sistema democrático, cujo desenvolvimento e popularidade atuais se tornaram uma característica comum das democracias representativas no Ocidente e no Leste da Europa e reflete um estado de crise do sistema de representação. A crescente popularidade de políticos populistas geralmente sinaliza a insatisfação da sociedade face à democracia representativa. O ressurgimento do populismo pode significar o desejo do público por mais responsabilidade política. Os partidos e movimentos populistas são caracterizados pela forma carismática de liderança, fortes críticas à forma representativa de democracia (preferência pela democracia direta) e uma postura anti-elitista (anti-establishment). O populismo rejeita múltiplas identidades, i. e. o pluralismo cultural. Ociepka distingue o populismo étnico-nacionalista e o populismo cívico. No primeiro, o povo é dirigido contra as elites nacionais, imigrantes e organizações europeias. Já no segundo, há um apelo aos cidadãos (Ociepka, 2006, p. 97-107).

Definição de Kenneth Roberts

Para o americano Kenneth Roberts, o populismo pode ser definido pela existência de cinco características: um líder personalista e paternalista; uma coligação política multi-classes heterogénea; um processo de mobilização com ligações diretas entre o líder e as massas; uma ideologia amorfa e eclética, caracterizada por um discurso anti-elitista e anti-establishment; e um projeto económico redistributivo com técnicas clientelistas para ganhar apoio da população (Roberts, 1995, 88).

Definição de Antony Todorov

Para o búlgaro Antony Todorov, os movimentos populistas são uma ameaça, não por levantarem a questão da democracia direta, mas por defenderem a mobilização nacionalista baseada na xenofobia. O populismo pressupõe formas extremas de democracia, legitimando posições políticas através do “povo”. Representa o objetivo ideal de estabelecer contacto direto com as massas populares através de diferentes formas de democracia direta. É uma tentativa de garantir a justiça nos momentos de transição, quando a normalidade é colocada em questão. O populismo é definido como “uma estratégia que prioriza a necessidade de contacto direto entre a elite e o povo, sem a mediação de instituições” (Todorov, 2007) . A democracia direta é um elemento da estratégia populista. Contudo, não está apenas presente no populismo. Por exemplo, na Suíça, os referendos limitam os poderes dos partidos políticos e exercem pressão se não cumprirem expetativas populares. O problema não é a democracia direta, mas o seu uso autoritário. O populismo é apoiado pelas aspirações populares por justiça e pelo sentimento de injustiça. Contudo, como refere Antony Todorov, nem todas as plataformas políticas que criticam a injustiça social e questionam a desigualdade social são necessariamente populistas. O populismo baseia-se em atitudes anti-elitistas e na compreensão da nação como comunidade orgânica, composta por um povo e Estado. O populismo tem muito sucesso pois atrai pessoas com ideias pré-concebidas, sendo que são as classes menos instruídas que estão inclinadas a seguir quem fornece as promessas mais persuasivas. Segundo Todorov, os movimentos populistas atuais põem em perigo a democracia porque defendem a mobilização nacionalista baseada na desconfiança ou mesmo na rejeição de estrangeiros, é um populismo nacional. O populismo não pode ser definido como de esquerda ou de direita, social ou conservador. Este fenómeno está a eliminar estas distinções políticas.

Definição de Juan Carlos Cassagne

Na opinião radical do argentino Juan Carlos Cassagne, o populismo, tanto latino-americano como europeu, tem a sua origem no populismo dos regimes totalitários ditatoriais europeus do século XX, tanto de direita (regime italiano fascista de Mussolini e o regime nazi de Hitler) como de esquerda (o regime soviético de Estaline). O populismo não passa de um passo para a ditadura (vejamos, por exemplo, os regimes atuais da Polónia, Hungria e Turquia, que se estão a transformar em regimes autoritários). Para Cassagne, os regimes populistas, nomeadamente os latino-americanos, revelam-se contra a democracia, contrariando os princípios da legalidade, da dignidade da pessoa humana e da separação de poderes. O líder populista pretende ser a voz do povo e, sendo essa própria voz, o seu poder aumenta e até o próprio poder judicial é controlado pelo poder executivo hegemónico deste líder. Há uma rutura com o princípio da separação de poderes. Cassagne afirma que, em certa medida, todos os partidos, regimes e movimentos políticos são populistas, pois todos procuram cativar o povo, preferencialmente as massas, para adquirir votos. No populismo latino-americano há uma construção de uma identidade coletiva semelhante à da China comunista e da União Soviética. Dá-se uma importância ao coletivo, em detrimento do indivíduo. Os Estados populistas são totalitários: tomemos como exemplo o chavismo venezuelano e o castrismo cubano (Cassagne, 2017, p.64-67). Segundo o autor, a política dos regimes populistas latino-americanos, tal como a nazi e comunista, baseia-se no apoderamento do controlo da imprensa e do impedimento das liberdades de expressão, tanto progressivamente como num golpe. O líder consegue a sua adesão com a insatisfação do povo. O homem, hipnotizado com as promessas e ideias do líder, perde os seus atributos como individual transformando-se num ser coletivo desprovido de sentimentos pessoais e expresso de maneira violenta e de forma direta. Ao depender das massas, o Estado populista viola o princípio da dignidade da pessoa humana (Cassagne, 2017, p. 57-58). Concluindo, o populismo rejeita o princípio da legalidade, os direitos individuais, a proteção das minorias, os partidos de oposição, o controlo judiciário e a separação de poderes. Trata-se de um fenómeno totalitário.

Definição de David Fontana

O populismo une sentimentos anti-sistema, autoritários e xenófobos. David Fontana separa duas versões de populismo: O primeiro, unbundled populism, baseia-se apenas numa definição de reivindicações políticas. Já o bundled populism refere um povo sem poder que luta contra uma elite injusta e, além das reivindicações políticas que colocam cidadãos comuns contra as elites, incluem reivindicações autoritárias e xenófobas. O unbundled populism é insuficiente para explicar a política atual: no bundled populism, ao antiestablishment juntam-se ideais autoritários e xenófobos. Defende a soberania popular à custa dos valores democráticos, o antiliberalismo e a xenofobia (Fontana, 2018, p. 1482-1505). Como podemos concluir, o populismo do século XIX, dos EUA, por exemplo, apenas se baseava no unbundled populism. Contudo, para entendermos o populismo contemporâneo, temos de acrescentar à teoria do unbundled populism também o bundled populism, ou seja, o caráter autoritário e xenófobo deste conceito. Todavia, o bundled populism está mais presente em ideais de extrema-direita, na Europa, nos Estados Unidos e agora também no Brasil, com Jair Bolsonaro. Não está tão presente no populismo dos restantes países da América do Sul, visto que nestes países existe um populismo de esquerda. Tendo em vista a versão dualista do populismo de David Fontana, pode-se inferir que o populismo começou por ser unbundled e, com o seu desenvolvimento e com o fenómeno político do século XX e inícios do século XXI, se tornou bundled, ou seja, foi acrescentado um caráter mais negativo ao populismo. Este movimento sempre utilizou argumentos ad populum, que colocam um grande número de pessoas comuns injustamente desautorizadas contra uma elite de poder. O populismo visa obter o apoio de pessoas comuns, dando-lhes o que elas querem em troca.

Definição de Anders Ravik Jupskås

O norueguês Anders Ravik Jupskås (Jupskås, 2013) refere seis pontos do populismo, dividindo o populismo em sete tipos. Primeiro, os políticos apelam ao povo unido contra os partidos que o dividem — é o populismo conservador. As pessoas possuem uma identidade nacional e têm uma consciência coletiva. Segundo, os políticos apelam para o “povo comum” contra a elite privilegiada, i.e. o povo é suprimido pela elite. Por razões económicas, sociais ou culturais, os interesses da “maioria silenciosa” não estão representados — é o populismo neoliberal. No populismo socialista o inimigo do povo é a elite económica. Terceiro, os políticos apelam para um povo homogéneo, Volk, com características étnico-culturais similares. É um populismo nativista, xenófobo ou excludente, onde se destaca um nacionalismo étnico. Para este, alguma ideia que tenha vindo do exterior é uma ameaça à nação. Há, neste caso, uma defesa de políticas xenófobas e de antiimigração. Quarto, há um apelo da direita para o povo na tradição fascista. Para os populistas fascistas, o “povo” é equivalente às “massas”. Há um nacionalismo agressivo, um populismo fascista. Quinto, um apelo ao povo também se pode referir a um grupo que vive numa região específica do país — é um populismo regional. Como exemplos temos o movimento independentista da Catalunha, contra Madrid, e a Lega Nord em Itália, contra Roma. O populismo regional procura reivindicar tradições e costumes contra instituições políticas centralizadas, tentando autonomia ou até independência. O sexto, relacionado com o populismo regional, é o apelo ao “povo da periferia”, aquele que vive a sua vida longe do centro de poder. É o populismo periférico. Esse tipo de populismo mobiliza-se na tradicional clivagem centro-periferia e a defesa da democracia local é provavelmente seu objetivo principal.

Conclusão

O populismo é, portanto, uma doutrina que apela aos interesses do povo, usando argumentos ad populum. Os populistas tentam alcançar diretamente o povo ignorando as elites e o sistema, tentando forjar uma nova consciência coletiva. O populismo não é uma ideologia política, mas sim uma forma de organização política, o que justifica a sua presença em todo o espetro político. As duas ideias principais do populismo são o anti-elitismo, o “povo” contra a “elite” corrupta que não satisfaz os interesses dele, e o anti-pluralismo, que defende uma sociedade homogénea sem minorias, tendo ideias xenófobas. Está presente tanto em ideologias de direita como de esquerda e é uma ameaça à democracia representativa — defende uma democracia direta. É um fenómeno que vem sempre associado a uma ideologia mais forte (comunismo, nazismo, etc.) e, por isso, é algo temporário que funciona como uma impulsão para a propagação da outra ideologia. O líder populista tem sempre um papel relevante, sendo tanto a “voz do povo” como um elemento de elevada autoridade.

No artigo, o populismo é referido como um conceito com várias interpretações. É um conceito ligado a um sentimento de “nostalgia nacionalista”, um reflexo da diminuição de bem-estar da população. Outra noção presente é o facto de este fenómeno ser uma estratégica política com o líder carismático que apela às massas e critica o establishment. No próprio artigo aparecem duas referências a dois cientistas políticos que foram analisados no trabalho: Cas Mudde (com a ideia de ideologia de baixa intensidade e de um povo puro contra uma elite corrupta) e Jan-Werner Müller (com a ideia de que os populistas são os únicos representantes legítimos do povo). Como se pode concluir, a definição dos autores não se diferencia da do artigo. Faltou apenas referir o seu caráter xenófobo e a sua compatibilidade com a democracia direta.

Como pudemos observar, o populismo está presente em inúmeros pontos do globo, inclusive no nosso país. O próprio presidente Marcelo Rebelo de Sousa tem sido apelidado entre nós como populista. O populismo é algo que, quer queiramos quer não, vai estar sempre presente na política, visto que, para um político ganhar apoio da população, tem de usar o seu pathos. É algo que é inseparável de um discurso político. Pode é ser usado em diferentes graus, o que faz deste conceito algo mau quando usado em demasia, tal como muitos outros conceitos. Porque, no fim de contas, os afetos do povo são muito importantes para uma escolha política.

É um conceito fragmentário, visto que pode ser usado tanto em políticas de direita como de esquerda, e também temporário. Uma palavra de nove letras que cada vez mais está presente na política e nos media. As próprias noções de populismo variam de autor para autor, o que mostra que é um conceito muito abrangente.

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Sofia Canova Saraiva Lopes

Nuno Garoupa, “Populismo 4.0” artigo de opinião publicado no Diário de Notícias em 09.05.2017

“Populismo 4.0”

«Chamavam-se nacionalistas, soberanistas, neofascistas, nacional-católicos, neoconservadores, radicais de direita. Posicionaram-se como antifederalistas, anti-Bruxelas, contrários ao projeto europeu do bem-estar social e da esperança. Excluídos das instituições, eram originalmente pequenos partidos de protesto. Em França, chegaram perto dos 20%, mas, graças a um curioso sistema eleitoral, andaram estes anos todos sem deputados, um punhado de autarcas, sem representação nos reguladores, tribunais, empresas públicas e restante aparelho do Estado. Na Alemanha, ficaram sempre excluídos pela regra dos 5%. No Reino Unido, são dizimados pelo sistema de círculos uninominais desde os anos 1990. Na Áustria, quando entraram no governo federal, o país foi sancionado pela União Europeia. Agora que já mandam na Hungria e na Polónia, a Europa encolhe-se. São os populistas de primeira geração. Le Pen esteve presente neste domingo, mas ainda não ganharam desta vez. Trump conseguiu o poder nos Estados Unidos.

Do lado oposto, foram comunistas, trotskistas, estalinistas, maoistas, chavistas, castristas e muitos outros istas. Enquanto andaram pelos governos como parceiros muito minoritários, em Itália, em França, Chipre, na Grécia ou nos países escandinavos, eram apenas comunismo europeu ou esquerda radical. Mas depois o Syriza apareceu, cresceu e ganhou. Deixaram de ser comunistas ou trotskistas. Passaram a ser simplesmente populistas. São os populistas de segunda geração.

Num mundo cheio de populistas, da direita à esquerda, tinham também de aparecer os populistas do centro. E a expressão apareceu para cunhar o novo presidente francês Macron. No passado eram centristas, moderados, reformistas, renovadores, até neoliberais. Ao temperar o entusiasmo europeu com elementos de ceticismo, ao relativizar o atual contexto cheio de dúvidas sobre a construção federal, ao criticar os partidos tradicionais, o centro também se encheu de populismo. São os populismos de terceira geração, dos quais o nosso Presidente Marcelo, entre os seus afetos e as suas cumplicidades com a gerigonça (esse pleno populismo de esquerda), já foi acusado de ser um precursor. E, na semana passada, até Rui Moreira foi chamado de perigoso populista.

Mas continuemos em Portugal. Acredita que há corrupção no atual sistema democrático? Populista. Fala dos famosos submarinos? Populista. Acha mal um primeiro-ministro ter um amigo que lhe empresta 20 milhões de euros? Populista. Espantado que os 15 mil milhões de euros disponibilizados aos bancos não provoquem mais convulsão social? Populista. Desconfia que tudo no caso BES acabará em arquivamentos e prescrições? Populista. A justiça penal falha sistematicamente? Populista. A classe política deve ser criticada pela forma como favorece os seus interesses pessoais? Populista. Os candidatos eleitorais persistem em ficções para fugir dos problemas? Populista. Foi a classe política que fez a legislação a seu favor? Populista. Há óbvios conflitos de interesse? Populista. Cita o Correio da Manhã? Populista. Temos, pois, que as elites e as classes dirigentes, ou as instituições por si colonizadas, não são passíveis de qualquer crítica por um cidadão informado e descontente. Quem critica é simplesmente populista. São os populistas da quarta geração. Já não são nem de esquerda, nem de direita, nem do centro, mas qualquer cidadão que tem críticas à classe política instalada.

De repente, só há populismo. Tornou-se o novo insulto fácil, a melhor forma de fugir de qualquer discussão séria, a desculpa favorita das elites para evitar prestar contas. Ao mesmo tempo, não há demagogia, não há mentira, não há engano, mas apenas populismo. A direita é populista, a esquerda é populista, o centro é populista, os eleitores insatisfeitos são populistas. Em vez de serem chamados burros ou idiotas, imorais ou desmancha-prazeres, são populistas, o que parece menos emocional e intelectualmente mais sapiente. Chegados ao populismo de quarta geração, nem vale a pena tentar definir o que significa “populismo,” como ainda vão insistindo ingloriamente alguns politólogos.

Apesar de pensar que a infeliz moda vai ficar por muito tempo, parece-me que o melhor caminho seria eliminar completamente a palavra “populismo” e regressar aos conceitos antigos. De um lado, radicais de direita, etc. Do outro, radicais de esquerda, etc. Ao meio, reformistas, radicais do centro, etc. E os eleitores insatisfeitos são apenas isso, insatisfeitos. Cada um com a sua narrativa própria e diferenciada. Mas, ao menos, fica mais fácil entendermo-nos. Sem “populismo”».

Comentário:

Noção de populismo a partir de Jan-Werner Müller

Jan-Werner Müller inicia a sua publicação com o que, na linguagem comum, se define como populismo. O conceito surge como sinónimo de algo que, de um modo geral, é contra o sistema político instituído e que não revela qualquer tipo de ideia política, pois o conteúdo parece não importar. Associa-se ao populismo vários tipos de emoções – os seus líderes são pessoas furiosas e os seus eleitores estão frustrados ou ressentidos. Afirma-se ainda que os apoiantes do populismo se encontram fundados na pequena burguesia (“colarinhos-branco”). Para o autor, o populismo reveste diversos significados, dependendo do contexto geográfico em que se insere: nos Estados Unidos, continua associado a políticas igualitárias de esquerda que contrastam com os ideais do Partido Democrático e na Europa, está conotado com políticas irresponsáveis e com práticas demagógicas. Para este autor os populistas, para além de serem contra as elites, são também anti-pluralistas. A sua base é sempre um tipo de política identitária (embora nem todas as políticas identitárias sejam populistas), pois apenas se identificam com uma base social que consideram como moralmente pura. O populismo é uma maneira de idealizar a política, de um ponto de vista moral, em que existe um grupo de pessoas unido, moralmente puro, que se insurgem contra as elites corruptas ou moralmente inferiores. Nas suas campanhas, os líderes populistas encaram os seus adversários como fazendo parte de uma elite corrupta e imoral. Tomando o poder, recusam-se a aceitar a oposição como legítima. Assim, excluem do conceito de “povo” tudo o que consideram ser imoral e, por isso, são antipluralistas, pois apenas eles é que representam o povo. A obra deste autor cuida ainda das técnicas de governação a que os líderes populistas recorrem, uma vez no poder: em primeiro lugar, colocam membros da sua confiança em posições que, até aí, não estavam conotadas com o poder partidário, como, por exemplo, a justiça ou a comunicação social; subornam ainda o seu eleitorado com favores materiais ou imateriais, desfavorecendo aqueles que pertencem às elites corruptas, no plano legislativo e judicial; e, por fim, hostilizam a sociedade civil, nomeadamente as Organizações Não Governamentais que os criticam, procurando desacreditá-las perante o seu eleitorado. Ao contrário de certos autores, que afirmam que o populismo é a parte autêntica da democracia moderna ou que é um tipo de patologia causado por cidadãos irracionais, JanWerner Müller afirma que o populismo é a sombra permanente da democracia representativa.

Noção de populismo a partir de Juan Carlos Cassagne

A obra de Juan Carlos Cassagne analisada neste trabalho versa sobre o populismo na América Latina. O autor entende que os movimentos populistas radicais latinoamericanos constituem uma espécie de contracultura da democracia baseada no governo da lei (princípio de legalidade) que limita ou autolimita as atribuições do governo com fórmulas de equilíbrio que organizam a repartição dos poderes estatais de acordo com o princípio da separação dos poderes e o pleno respeito dos direitos fundamentais das pessoas. Assim como Jan-Werner Müller, Juan Carlos Cassagne também entende que quando o movimento populista ascende ao poder passa a desobedecer ao Parlamento, com a cumplicidade de um poder judicial corrupto. Confrontam-se com a oposição, ora através de mecanismos de perseguição de não coacção (sentenças judiciais sem provas), ora através do uso directo da força. Controlam ainda a imprensa escrita, oral e televisiva, com o objectivo de impedir o exercício das liberdades de expressão e o direito de informação. Para o autor, o Estado populista caracteriza-se pela construção de uma identidade colectiva, numa espécie de estado superior de demagogia, cujo objectivo consiste em configurar uma lógica de poder em que uma parte do povo, mediante uma operação hegemónica, assuma a direcção do Estado.

Noção de populismo a partir de José Filipe Pinto

José Filipe Pinto autor afirma que, embora o populismo, visto como movimento ou lógica de articulação, seja um fenómeno com cerca de dois séculos, as suas raízes são milenares, uma vez que na democracia ateniense do século V a.C. já eram identificáveis marcas de demagogia e práticas deste movimento. Reconhece, desde início, a ambiguidade do termo “populismo”, até porque é também difícil definir a palavra “povo”, conceito essencial neste tema. Para os populistas, não é viável conceber o povo como a totalidade de um país, sendo que é necessário proceder à exclusão daqueles que, embora cidadãos nacionais, não são vistos pelo populismo como integrando o povo. Considera que o populismo representa uma forma de articulação do discurso assente na luta pela hegemonia, concebida, sobretudo, na sua dimensão política. Esta é uma luta em nome do povo, ao qual é atribuída uma identidade própria, e contra um opositor, concebido numa perspetiva negativa, como inimigo e não apenas como um adversário.

Noção de populismo a partir de Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser

Os dois autores reiteram, desde logo, o carácter exagerado e a frequência com que esta expressão é utilizada em diferentes contextos e nas diferentes áreas do globo. Por exemplo, na Europa, expressa correntes e opiniões que se afirmam como anti-imigração e xenófobas, enquanto na América Latina, é equiparado a respeito a clientelismo e má gestão económica. Parte da confusão deriva do facto de o populismo ser um conceito raramente usado pelas próprias pessoas ou organizações. É habitualmente aplicado por terceiros, a maioria das vezes com uma conotação negativa. Para estes autores, o populismo envolve sempre uma crítica do poder estabelecido e uma adulação do povo comum, sendo que a sociedade se encontra dividida em dois campos homogéneos e antagónicos: o povo puro e a elite corrupta. É uma ideologia de baixa densidade, ou seja, é sempre combinado com outro tipo de ideologia, o que acaba por apelar a outro eleitorado. Cas Mudde e Cristóbal Karlwasser definem ainda os três conceitos essenciais de populismo: o povo, a elite e a vontade geral. A noção mais conhecida do povo como soberano baseia-se na ideia democrática moderna que define o povo também como governante. Em certas circunstâncias, o povo soberano pode entender que não está a ser bem representado pelas elites no poder e criticar o poder político ou revoltar-se contra este. Outra versão, com que frequentemente se identificam os movimentos populistas, é a do povo como “pessoas comuns”, que reivindicam a dignidade e o conhecimento de grupos que objectiva ou subjectivamente estão a ser excluídos do poder devido ao seu estatuto sociocultural ou socioeconómico. Os populistas procuram unir uma maioria silenciosa, mobilizando-a contra um inimigo definido: o poder instituído elitista. Criticam também os partidos políticos, grandes organizações e a administração pública, acusadas de distorcer os elos verdadeiros entre os líderes populistas e as pessoas comuns. Já quanto à elite, os populistas agrupam a elite política, a económica, a cultural e a dos meios de comunicação social, num grupo corrupto homogéneo que age contra a vontade geral do povo. Certos teóricos argumentam que, então, os populistas não poderiam governar, pois assim também se tornariam elite. No entanto, estes contra-argumentam afirmando que o poder real não pertence aos líderes democraticamente eleitos (que serão os populistas), mas a forças obscuras que controlam o poder económico e que procuram enfraquecer a voz do povo. A vontade geral é, de acordo com Rousseau, a capacidade do povo para se juntar numa comunidade e legislar com vista a fazer vingar o interesse comum. Os populistas apelam à utopia republicana de Rousseau do autogoverno, isto é, à própria ideia de os cidadãos serem capazes, tanto de fazer leis, como de as executar e, por isso, defendem mecanismos democráticos directos, como os referendos e os plebiscitos. Nesse sentido, a vontade geral baseia-se na unidade do povo e numa clara demarcação daqueles que não lhe pertencem e, consequentemente, não são tratados como iguais, o que pode legitimar ataques autoritários a todos os que (supostamente) ameaçam a homogeneidade do povo. A posição convencional é a de que o populismo representa um perigo para a democracia. Outras fontes afirmam que este constitui a única forma verdadeira da democracia. Até certo ponto, os autores concordam com ambas. Assim, acabam por definir o populismo como essencialmente democrático, mas que é incompatível com a democracia liberal que constitui o modelo dominante no mundo contemporâneo. Este movimento afirma que nada deverá constranger a vontade do povo e repudia as noções de pluralismo, bem como os direitos das minorias e as garantias institucionais que as deveriam proteger. Invocando com frequência o princípio da soberania popular, os populistas criticam as instituições independentes inerentes ao modelo democrático liberal que procuram proteger os direitos fundamentais, como por exemplo, sistema judicial e meios de comunicação social.

Noção de populismo a partir de Beata Ociepka

Beata Ociepka entende o populismo como uma forma de actividade política presente em todo o espectro político democrático na Europa. Esta forma surge sob determinadas circunstâncias e pode ser caracterizada por uma mobilização rápida do eleitorado, através de retóricas simples, mas que apelam às emoções dos eleitores. Afirma que este se tornou uma parte essencial do sistema democrático, tornando-se elemento comum, quer das democracias da Europa Ocidental, quer da Europa do Leste (embora assumindo formas diferentes), refletindo a crise dos sistemas representativos. A crescente adesão a políticos populistas geralmente expressa o descontentamento da sociedade com as instituições democráticas. A re-emergência do populismo pode estar relacionada com o desejo dos cidadãos de que exista mais responsabilidade política. Os partidos/movimentos políticos caracterizam-se pelo carácter carismático do líder, por uma forte componente crítica à democracia representativa (pois estes preferem a democracia direta) e por uma atitude anti-elitista e contestatária do poder político estabelecido. Há uma tendência na ciência política de hoje para inserir o populismo contemporâneo na ideologia de extrema-direita, pois este costuma abordar a temática da identidade nacional nas suas campanhas políticas. Definem “o povo” como elemento central da sua ideologia, num sentido nacionalista ou regionalista, direcionando-os contra as elites do país, os imigrantes ou as organizações europeias. 

Conclusão

Em suma, da análise das definições apresentadas pelos diferentes autores, retiro que o populismo é um movimento político, no qual existe uma necessária dicotomia entre o povo, moralmente digno, e a elite corrupta. Igualmente importantes são as atitudes governativas adoptadas pelos populistas uma vez no poder, destacando-se a interferência por parte do poder executivo nos outros dois poderes (legislativo e judicial), em clara violação do princípio da separação dos poderes. O artigo de opinião que seleccionei sublinha o carácter excessivo com que a palavra populismo é utilizada, abrangendo todos os que criticam o poder político: “Quem critica é simplesmente populista. São os populistas da quarta geração. Já não são nem de esquerda, nem de direita, nem do centro, mas qualquer cidadão que tem críticas à classe política instalada”. Tanto Jan-Werner Muller como Cas Mudde fazem referência a essa característica, afirmando que a crítica ao poder instituído é sempre parte integrante do discurso populista. No entanto, Nuno Garoupa, no seu artigo, acaba por rejeitar a utilização do conceito “populismo”, uma vez que entende que esta designação é excessivamente utilizada, e propõe um regresso à utilização de termos como “radicais de direita”, “radicais de esquerda” ou “radicais de centro”. A ideia expressada por Nuno Garoupa de que o populismo surge sempre no âmbito de uma outra ideologia é corroborada por Cas Mudde, que afirma que o populismo é uma ideologia de baixa densidade.

Bibliografia

  • CASSAGNE, Juan Carlos, El Estado Populista, 1.ª edição, Editorial B de F, Buenos Aires, 2017;
  • MISCOIU, Sergiu, «From Populism to Neo-Populism? Emprical Guidelines for a
    Conceptual Delineation» in Contemporary Populism: A Controversial Concept and Its Diverse Forms, 1.ª edição, Cambridge Scholars Publishing, Newcastle upon Tyne, 2013.
  • MOFFITT, Benjamin, The global rise of populism: performance, political style, and representation, 1.ª edição, Stanford University Press, Stanford, 2016.
  • MUDDE, Cas e KALTWASSER, Cristóbal Rovira, Populismo: uma brevíssima introdução, 1.ª edição, Gradiva, Lisboa, 2017
  • MÜLLER, Jan-Werner, What is Populism?, 1.ª edição, University of Pennsylvania Press, Filadélfia, 2016.
  • OCIEPKA, Beata, «Populism and National Identity», Polish Political Science, Volume XXXV (2006), p. 97-107.
  • PINTO, José Filipe, Populismo e Democracia: Dinâmicas Populistas na União Europeia, 1.ª edição, Edições Sílabo, Lisboa, 2017.
  • SANDRU, Daniel , «The Ideological Components of Populism», in Contemporary Populism: A Controversial Concept and Its Diverse Forms, 1.ª edição, Cambridge Scholars Publishing, Newcastle upon Tyne, 2013.

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Tiago Jorge Lazáro Gonçalves da Eira

Paul Krugman “Stop Calling Trump a Populist”, publicado no jornal “The New York Times” em Agosto de 2018

“Message to those in the news media who keep calling Donald Trump a “populist”: I do not think that word means what you think it means.

It’s true that Trump still, on occasion, poses as someone who champions the interests of ordinary working Americans against those of the elite. And I guess there’s a sense in which his embrace of white nationalism gives voice to ordinary Americans who share his racism but have felt unable to air their prejudice in public.

But he’s been in office for a year and a half, time enough to be judged on what he does, not what he says. And his administration has been relentlessly anti-worker on every front. Trump is about as populist as he is godly — that is, not at all.

 […]

And then there’s labor policy, where the Trump administration has moved on multiple fronts to do away with regulations that had protected workers from exploitation, injury and more.

But immediate policy doesn’t tell the whole story. You also want to look at Trump’s appointments. When it comes to policies that affect workers, Trump has created a team of cronies: Almost every important position has gone to a lobbyist or someone with strong financial connections to industry. Labor interests have received no representation at all.

 […]

Watching Trump in action, it’s hard to escape the impression that he knows very well that he’s inflicting punishment on his own base. But he’s a man who likes to humiliate others, in ways great and small. And my guess is that he actually takes pleasure in watching his supporters follow him even as be betrays them.

In fact, sometimes his contempt for his working-class base comes right out into the open. Remember “I love the poorly educated”? Remember his boast that he could shoot somebody on Fifth Avenue and not lose any voters?

Anyway, whatever his motivations, Trump in action is the opposite of populist. And no, his trade war doesn’t change that judgment. William McKinley, the quintessential Gilded Age president who defeated a populist challenger, was also a protectionist. Furthermore, the Trumpian trade war is being carried out in a way that produces maximum harm to U.S. workers in return for minimum benefits.

While he isn’t a populist, however, Trump is a pathological liar, the most dishonest man ever to hold high office in America. And his claim to stand with working Americans is one of his biggest lies.”

Comentário:

O presente trabalho tem como objetivo primordial a pesquisa acerca do conceito de populismo, comparando as visões de diferentes autores sobre o tema com aquelas que aparecem frequentemente no discurso jornalístico, com o objetivo de discorrer acerca da uniformidade, ou não, dessas perspetivas, evidenciando a falta de consenso relativamente a este conceito.

A verdade é que este tema, apesar de não ter nascido apenas nos últimos anos, pela ameaça que representa hoje, mais do que nunca, às democracias liberais, tem sido referido recorrentemente nos media e tem sido alvo de inúmeros estudos a nível académico. O populismo caracteriza-se como um fenómeno político com uma definição muito pouco consensual entre os principais académicos e, por isso, os seus limites são ainda ténues.

Este fenómeno começou a ser estudado, de forma sistemática, apenas nos anos 60 do século passado, concluindo-se que ocorreria tanto nas nações modernas, como teria já ocorrido nas nações da pré-modernidade (Pappas, 2018). Daqui se infere que o populismo não é um fenómeno recente, mas que ganha, nos dias de hoje, contornos especiais, em parte devido à forma como a comunicação social trata o fenómeno, que, pelo uso indiscriminado do termo, acaba por divergir das definições dadas por grande parte dos principais cientistas políticos que se debruçam sobre o tema.

Por outro lado, independentemente da definição que adotarmos como “a mais adequada”, não há dúvidas de que o populismo existe e tem relevo no contexto atual (Ionescu & Gellner, 1969), apresentando uma retórica imprecisa, paternalista e antissistema, em contraste com um discurso moderado, com vista à promoção da verdadeira justiça social.

Sobre o artigo

Donald Trump não será um verdadeiro populista porque as políticas a que dá execução não se inserem no conceito que o próprio defende como populismo que, em traços muito gerais, considera ser a consumação de políticas em prol do povo trabalhador, contra as elites instituídas. Desse modo, manifesta-se contra a ideia abstrata de populismo que os media lhe dão.

Fica, portanto, evidente a ideia de que, devido à fragilidade desta definição, existe uma certa plasticidade na atribuição do termo “populista” a um caso da realidade política concreta, e é dessa debilidade que os media se aproveitam para assim classificar diversos políticos. Muitas vezes, na atual conjuntura, o termo tem sido usado como mero sinónimo de “fazer campanha”, de demagogia, ou simplesmente para criticar um político que de nós diverge (Mudde & Kaltwasser, 2012, p. 3), no entanto, é importante que se estabeleçam limites entre o que é popular e o populismo.

Por outro lado, é exatamente devido a essa alargada gama de políticos e de forças políticas que são considerados, não só pelos media mas também por diversos académicos, como populistas não possuírem nenhum denominador comum, que a definição continua, nos dias de hoje, bastante abstrata (Rooduijn & Pauwels, 2010, pp. 1-28).

As causas do Populismo – Populismo e Democracia

A partir do artigo de opinião de Krugman, podemos, desde logo, distinguir entre dois principais campos de manifestação do populismo: o populismo enquanto forma de exercício do poder ou o populismo enquanto forma de o atingir. Esta polarização do populismo em dois eixos principais é relativamente consensual e implica diferentes formas de análise. O primeiro tem como objeto políticas efetivamente concretizadas, enquanto que o segundo se fica pelas meras promessas ou por orientar o discurso político num certo sentido.

Independentemente do campo de atuação ou mesmo das particularidades de cada definição, o conceito de populismo tem um princípio que lhe serve de base: a ideia de soberania popular, isto é, a ideia de povo enquanto titular de um poder que lhe foi retirado pelas elites instituídas. É na consequente tentativa de recuperação, pelo povo, do poder que lhe foi usurpado que constitui a promessa populista.

Deste modo, é legítimo perguntar quais são, afinal, as causas que levam ao aparecimento do populismo enquanto fenómeno político e como este surge nos atuais contextos democráticos. Assim, segundo Nadia Urbinati, o populismo é um parasita infiltrado nas democracias liberais (Urbinati, 2013). Esta definição do populismo como um fenómeno parasítico implica uma relação intrínseca entre democracia e populismo, ou seja, o populismo não é um problema sem uma causa definida e sem solução concreta, surgindo, afinal,  no interior das democracias liberais, porque estas e o sistema partidário deixaram de realizar com eficácia a função que lhes competia, representando, por isso um “adoecer” da democracia.

Esta ideia de populismo como fenómeno que nasce da própria incapacidade das democracias liberais, e não de fatores externos, é acompanhada por outros investigadores, como José Filipe Pinto (Pinto, 2017), que caracteriza o populismo como o irmão gémeo da democracia e não o seu filho bastardo, ou seja, pode existir populismo sem democracia, mas nunca democracia sem populismo, porque é característica da natureza humana a tendência para encontrar sempre irregularidades. Se tal não ocorresse, e o populismo fosse efetivamente um novo conceito derivado unicamente da gritante ineficácia da democracia, o seu filho bastardo, então não encontraríamos populismo em países com elevado IDH, o que se verifica na realidade. O problema está, assim, no mau desempenho do atual sistema politico-partidário, conduzindo à ascensão progressiva deste fenómeno.

A ideia de soberania popular, já referida, constitui também um elemento comum entre os conceitos de populismo e o de democracia, corroborando esta linha de pensamento. A relação existente entre ambas centra-se neste elemento. No entanto, a democracia fica-se pela mera promessa de participação popular no exercício desse poder e a sua realização institucional envolve, obrigatoriamente, exclusão, no sentido de existir um povo soberano, mas que não governa de forma direta. Esta exclusão, que é inevitável na democracia, pode originar uma onda populista, na medida em que se considera que cabe ao povo este governo direto, sem exclusão (Brito Vieira & Carreira da Silva, 2018).

A propósito desta questão, John O’SullivanBibliografia

Webgrafia

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Laura Simões da Mota Lopes

Artigo da Revista Visão “A era do Populismo“, publicado em 13.03.2017

“O populismo está na ordem do dia. O termo é constantemente usado por jornalistas, académicos e políticos para descrever personalidades, partidos e movimentos muito díspares. Mas o que é o populismo, afinal?
Para responder a esta questão, a Fundação Francisco Manuel dos Santos trouxe a Portugal Cas Mudde, politólogo holandês radicado nos Estados Unidos e um dos maiores especialistas neste tema. Numa conferência na Culturgest, onde apresentou o livro Populismo: Uma brevíssima introdução, recentemente editado pela Gradiva com o apoio da FFMS, o autor não podia ter sido mais explícito.

1- O populismo é uma ideologia política de baixa densidade, pouco desenvolvida, que trata apenas um conjunto limitado de questões. Assim, quase todos os agentes populistas adoptam uma ideologia hospedeira, que lhes confere mais substância. Isto explica a heterogeneidade de populismos disponíveis. Há populismos de direita e populismos de esquerda, conservadores e progressistas, religiosos e seculares. A maioria dos populistas de esquerda adere a alguma forma de socialismo, um fenómeno observável em diversos países da América do Sul, enquanto os populistas de direita tendem a ser nacionalistas, como se verifica em vários países europeus.

2- Os agentes populistas consideram que a sociedade está dividida em dois grupos homogéneos e antagónicos: a “elite corrupta” e o “povo puro”. A ideologia hospedeira acaba por influenciar a forma como estes grupos são definidos. Para dar dois exemplos, os membros do Tea Party consideram que os Estados Unidos são governados por “liberais degenerados” da Costa Leste, consumidores de latte e importadores de Volvos, em detrimento das “pessoas reais” que vivem na América profunda (the heartland), bebem café “normal” e conduzem automóveis americanos. Já Evo Morales, Presidente da Bolívia, distingue frequentemente “o povo”, indígena, onde se inclui, da “elite” branca.

3- Por paradoxal que pareça, o populismo é simultaneamente entusiasta e inimigo da democracia. É democrático ao defender intransigentemente a regra da maioria. E é visceralmente contra a democracia (liberal) ao rejeitar todos os freios e contrapesos do estado de direito democrático, que contempla instituições independentes que garantem a protecção dos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e a protecção das minorias. Para um populista é portanto inaceitável que a vontade do povo (puro), da maioria, seja limitada. Daí que o populismo redunde frequentemente em democracias iliberais.

4- Os políticos populistas subscrevem a crítica de Rousseau ao governo representativo, entendendo-o como uma forma aristocrática de poder. Existe por isso uma certa afinidade entre o populismo e a democracia directa. A política é vista como a aplicação da vontade geral. Esta, por ser infalível e absoluta, implica a marginalização de todos aqueles que não pertencem ao povo, legitimando ataques autoritários e iliberais a todos os que alegadamente ameacem a sua homogeneidade.

5- Há duas ideologias diametralmente opostas ao populismo: o elitismo e o pluralismo. O elitismo partilha com ele a divisão maniqueísta da sociedade. Escusado será dizer que para o elitista o grupo virtuoso já não é o povo – que é visto como vulgar e perigoso – mas a elite, que julga culturalmente, intelectualmente e moralmente superior àquele. Já o pluralismo entende que a sociedade está repartida numa miríade de grupos sociais e que a política deve reflectir os interesses e os valores desses grupos, recorrendo ao compromisso e ao consenso. O objectivo primordial é evitar que facções específicas, de qualquer índole, imponham a sua vontade às restantes.

6- Os líderes populistas assumem diferentes estilos. Mas todos projectam uma imagem cuidadosamente elaborada da vox populi. A distinção entre povo e elite não se baseia em critérios socioeconómicos, mas antes em aspectos morais. Tal permitiu a Donald Trump – um dos empresários mais ricos dos Estados Unidos – apresentar-se ao eleitorado como outsider (político) e logo necessariamente impoluto, enquanto descrevia Hillary Clinton como parte da elite de Washington, forçosamente alheada das necessidades básicas do povo americano. Por outras palavras, Trump utilizou a sua fortuna para atestar a sua independência em relação a “interesses particulares” e a experiência política de Hillary como demonstração da conivência da adversária com um sistema político (supostamente) caduco e iníquo.

7- O populismo existe em regimes democráticos e em regimes autoritários. Mas enquanto ideologia que exalta a vontade popular, floresce mais facilmente nas democracias eleitorais, tirando partido das tensões intrínsecas à democracia liberal, que se propõe assegurar um equilíbrio harmonioso entre o governo da maioria e os direitos da minoria. O que constitui uma tarefa árdua, quase quimérica.

Grande parte dos especialistas afirma que o populismo representa um perigo para a democracia. Cas Mudde considera que o populismo per se não é bom nem mau para o sistema democrático. Dependendo do poder eleitoral e do contexto em que surge, pode funcionar como ameaça ou como correctivo. O populismo tende a desempenhar um papel positivo na promoção de uma democracia eleitoral, minimalista, e a prestar um péssimo serviço ao desenvolvimento de uma democracia liberal. Por um lado, ao defender a soberania popular, tende a instigar a democratização de regimes autoritários. Por outro, ao minar a confiança nas instituições, acaba por diminuir inevitavelmente a qualidade das democracias liberais.

O populismo é um fenómeno moderno, que despontou com especial dinamismo nos Estados Unidos no final do século XIX e que não desapareceu desde então. Dada a importância assumida por alguns agentes populistas nas últimas décadas e a sua relativa persistência em diversos continentes, há quem defina o século XXI como a “era do populismo”. Segundo Cas Mudde, os peritos têm andado excessivamente preocupados com a oferta populista – com os seus líderes e ideários – esquecendo que estes não teriam tanto apoio se a população não concordasse com boa parte da sua retórica. É portanto fundamental combater a procura populista. O raciocínio é simples: se o solo for estéril, a semente do populismo não poderá medrar”.

* * *

Comentário:

A expressão “populismo” que está atualmente presente nos media e nos textos de jornalistas e académicos, pode ter várias interpretações e múltiplos significados, sem que os autores tenham já conseguido chegar a um consenso sobre o termo. “Para tornar as coisas ainda mais complicadas, em diferentes partes do globo o populismo tende a ser equiparado e é confundido com fenómenos bastante distintos”. (Cas
Mudde, Cristóbal Rovira Kaltwasser). De facto, o populismo assume, frequentemente, uma conotação negativa, o que pode nem sempre corresponder à realidade. O populismo é passível de ser abordado em diferentes vertentes: política, socioeconómica, cultural, ou ideológica. Assim, “o populismo é um fenómeno político extremamente heterogéneo” (Cas Mudde, Cristóbal Rovira Kaltwasser).

Há diversas teorias que se debruçam sobre o surgimento do populismo. Para Yannis Stavrakakis , o populismo surge com maior probabilidade em ambientes de crise e de maior vulnerabilidade: “Populism is a phenomenon which emerges in conditions of crisis and change of cultural values and social structures”. Tradicionalmente afirma-se que o populismo constitui uma ameaça à democracia. Para esta posição tradicional, o âmbito do populismo é uma distorção da democracia.

Porém, também é possível observar opiniões contrárias, que defendem que o populismo complementa o sistema democrático. É o caso de Daniele Albertazzi and Duncan Mcdonnell que afirmam que“in some instances, populists fight not for the demise of an existing liberal democratic system, but for its preservation”. Os mesmos autores complementam que “The key feature of populists is their claim to be the ‘true democrats’, fighting to reclaim the people’s sovereignty from the professional political and administrative classes”. Já Gianfranco Pasquino observa que “Populists generally reject all structures of political intermediation between the people and the leader, but it is their very definition of the people that creates analytical and political problems” (apud Daniele Albertazzi and Duncan Mcdonnell) e afirma ainda que “populists are not necessarily anti-democratic, I believe that the opposite is in fact the case: populist perspectives are almost unavoidably incompatible with democracy, or with liberal democracy” (Gianfranco Pasquino apud Daniele Albertazzi and Duncan Mcdonnell).

O autor Takis S. Pappas admite “I conceptualize populism as simply the flipside of political liberalism” e crescenta, ainda, “populist parties (…) depend for their success on leadership rather than ideology”. Segundo o autor, o populismo torna-se um movimento político em massa e passa a ser visto como uma estratégia política. No entanto, na perspetiva de Ernesto Laclau, o “populismo fue, o bien desestimado, o bien degradado como fenómeno político, pero en cualquier caso nunca pensado realmente en su especificidad como una forma legítima entre otras de construir el vinculo político”.

O artigo que seleccionámos corrobora precisamente as posições doutrinárias que antes mencionámos. Cas Mudde não apresenta uma visão definitiva acerca do populismo, quanto a saber se o mesmo afeta ou não o funcionamento da democracia. Defende que pode ser benéfico em certas circunstâncias e pode ser prejudicial em outras. Depende muito das especificidades de cada sociedade e da própria população. Na obra de Cas Mudde, defende-se que “o populismo tem três conceitos nucleares: o povo, a elite e a vontade geral”. Já para Takis S. Pappas, o populismo baseia-se em “politicization of resentment”, “new cleavage formation” e “polarization”. O populismo, para além da América do Norte e da América Latina, chegou à Europa. Um exemplo disso é a saída do Reino Unido da União Europeia na sequência da vitória do Brexit, cujo “resultado eleitoral foi previsto e saudado por vários líderes de partidos populistas de outros países” (José Filipe Pinto). Mas este não é um caso único, há outros que se estendem aos vários países da União Europeia, incluindo Portugal, que “era, de acordo com o Índice de Populismo Autoritário, o país que apresentava o décimo segundo valor mais elevado em 2016 e o décimo primeiro entre os países da União Europeia, com 20,5%” (José Filipe Pinto). O papel fundamental no surgimento de cada vez mais partidos populistas deve-se aos respectivos líderes. Estes, que dão a cara pelo projeto, têm de ser carismáticos, cativantes, têm de ter uma personalidade forte, marcante, capaz de transmitir segurança aos cidadãos. Muitas vezes, para além de explicitarem os seus objetivos, identificam os inimigos. O populismo “requer os indivíduos mais extraordinários a conduzir as pessoas mais comuns” (Paul Taggart, apud Cas Mudde, Cristóbal Rovira Kaltwasser). Apesar de a maiorida dos líderes ser homens, há mulheres que são líderes populistas, veja-se o caso de Marine Le Pen com o projeto da Frente Nacional francesa. Na conclusão do artigo, menciona-se o apoio que, em geral, a “doutrina populista” tem granjeado e que contribuiu para a popularidade da expressão. Sem esse apoio o populismo não conseguiria proliferar, com sucesso. Há, também, diversos modos de propaganda populista, ou seja, de cativar a população para esta prática política. Resta a incerteza sobre o papel do populismo na manipulação dos resultados democráticos. A adesão de partes expressivas dos eleitores aos programas deve-se à perda de confiança no sistema político democrático, consequência dos casos de corrupção e da incerteza quanto à capacidade de os partidos políticos desempenharem correctamente o seu papel de mediadores da expressão da vontade geral. Para além disto, é frequente os discursos populistas tratarem temas do agrado da população como forma de garantir o seu apoio ou de incutirem sentimentos de insegurança e medo. Uma pergunta relevante nesta óptica é a de saber de que forma se pode impedir que a apresentação de um projecto anti-democrático possa triunfar no âmbito de uma escolha livre e democrática.

Na verdade, e em jeito de conclusão, pode dizer-se que o termo “populismo” está presente no dia a dia, seja em notícias sobre Donald Trump, nos Estados Unidos, sobre o Brexit, no Reino Unido, ou até sobre o movimento dos coletes amarelos, em França. De acordo com as leituras realizadas, concluímos que há uma pluralidade de perspetivas, uma fragmentariedade de opiniões, que dificultam o combate a esta ameaça junto da população e que, em muitos casos, levam a uma distorção da realidade.

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Leonardo Matheus Bilhar

A vez do populismo”, artigo de opinião de William A. Galston, disponível Fundação FHC

«O “excepcionalismo americano” é um conceito forte — embora controverso — de análise cultural. Mas mudanças importantes na política americana desde o fim da Segunda Guerra Mundial foram tudo menos excepcionais. Na verdade, os Estados Unidos trilharam caminho similar ao de outras democracias ocidentais. Nas três décadas após 1945, as democracias de ambos os lados do Atlântico construíram sistemas de proteção social que os europeus chamam de social-democracia e os americanos de Estado de bem-estar social. Essa política foi mantida por um amplo consenso suprapartidário. Nos Estados Unidos, o presidente republicano Dwight D. Eisenhower (1953–61) pôs fim à tentativa de seu partido de reverter o New Deal e, posteriormente, o presidente Richard M. Nixon (1969–74) expandiu praticamente todas as políticas sociais do governo federal. À medida que crescia a inflação, Nixon deixou os devotos do livre mercado furiosos ao impor controles de preços e salários.

Com início em meados dos anos 1970, esse período político desacelerou diante da preocupação crescente com os impactos de um governo intervencionista sobre as finanças públicas e o crescimento do setor privado. The Crisis of Democracy [A crise da democracia], famoso relatório de 1975 desenvolvido pelo fórum de especialistas conhecido como Comissão Trilateral, expressou temores de uma “sobrecarga” da democracia — de as demandas sociais excederem a capacidade do governo de financiar e gerir os programas sociais.

As forças intelectuais e políticas que se uniram em torno dessas preocupações levaram a uma segunda convergência política do período do pós-guerra: o entrincheiramento conservador, liderado pelo presidente republicano Ronald Reagan (1981–89) nos Estados Unidos e pela primeira-ministra Margaret Thatcher (1979–90) no Reino Unido. O entrincheiramento não significou retrocesso. Reagan não colocou em risco os principais programas de seguridade social como a Previdência Social e o Medicare e Thatcher manteve em grande medida intacto o famoso Serviço Nacional de Saúde. Mas esses líderes colocaram em dúvida a competência do governo e buscaram fortalecer os mecanismos de mercado como modelos tanto para o setor público quanto para o setor privado. Os Conservadores venceram quatro eleições nacionais consecutivas, e o Partido Republicano se manteve na presidência dos Estados Unidos por três mandatos.

Do outro lado do Canal da Mancha, o democrata-cristão Helmut Kohl tornou-se chanceler da Alemanha Ocidental em 1982, pondo fim a treze anos de domínio do Partido Social-Democrata (SPD), e deu início a um programa que envolvia corte de gastos públicos, desregulamentação e privatização de empresas públicas. Até o presidente da França, François Mitterrand, líder do Partido Socialista que chegou ao poder em 1981 com um programa audacioso de expansão de programas sociais e de intervenção do Estado na economia, foi forçado a dar meia-volta e adotar um programa de austeridade fiscal menos de dois anos após assumir. Durante sua gestão, por duas vezes foi forçado a conviver com primeiros-ministros conservadores, cujos partidos haviam vencido as eleições parlamentares.

Diante do ressurgimento do conservadorismo, líderes reformadores tentavam renovar os partidos de esquerda. Os anos 1990 foram testemunhas de uma nova convergência política no Ocidente, o surgimento do movimento da Terceira Via. Bill Clinton liderou o processo, tornando-se presidente dos Estados Unidos em 1993 como líder do movimento Novos Democratas dentro do Partido Democrata. Inspirado pelo exemplo de Clinton, o Novo Trabalhismo uniu-se em torno de Tony Blair e Gordon Brown e deu nova vida ao Partido Trabalhista britânico, substituindo um intenso socialismo e pacifismo por uma agenda internacionalista e de políticas sociais e econômicas orientadas ao mercado. O Partido Trabalhista reformado varreu os Conservadores do poder em 1997 e voltou a vencer as eleições nacionais em 2001 e, novamente, em 2005.

Em 1998, o líder do SPD Gerhard Schröder tornou-se o chanceler alemão e conseguiu modernizar as políticas de bem-estar social, reduzir tributos e reformar o mercado trabalhista de seu país, ajudando a fundar a base da recuperação econômica da Alemanha após anos de baixo crescimento econômico desde meados da década de 1990. Por alguns anos, o vento soprou a favor das forças internacionais da Terceira Via.

A queda do Muro de Berlim em 1989 e a implosão da União Soviética em 1991 sinalizavam não apenas o fim do último concorrente ideológico da democracia liberal, mas também a integração mais acelerada das nações à economia global.

Inicialmente, os países ocidentais estavam preparados para se beneficiar dessa nova realidade, e um programa econômico conhecido como “Consenso de Washington” — disciplina fiscal, investimento público voltado ao crescimento econômico, liberalização do comércio e do investimento e desregulamentação, entre outras medidas — tornou-se um modelo tanto para países desenvolvidos quanto em desenvolvimento.

[…] para ler o artigo completo consultar o link no título.

Comentário:

O artigo que escolhemos procura elucidar os pensamentos do ex-presidente, sociólogo e cientista-político brasileiro, Fernando Henrique Cardoso e do membro sênior da Brookings Institution, William Galston acerca do conceito de populismo no século XX e na atualidade, bem como demonstrar a ascensão do movimento nos últimos anos na América e na Europa. Ademais, expõe as ameaças que esse movimento traz às democracias liberais e, ainda, os motivos que contribuíram para sua ascensão. 

O que é o populismo? Visão da doutrina

Cas Mudde e a doutrina maioritária definem o populismo como «uma ideologia rasa que considera que a sociedade se divide em dois grupos homogêneos e antagônicos, o ‘povo simples’ e a ‘elite corrupta». Diz ainda, que o populismo se trata de uma ideologia política de baixa densidade, pouco desenvolvida, a qual trata apenas um conjunto limitado de questões. Desse modo, a maioria dos agentes populistas adotam uma ideologia hospedeira, que lhes atribui consistência. Desse modo, pode-se explicar a diversidade de populismos no mundo.

Em entrevista ao jornal El País, Luis Ramiro (professor da Universidade de Leicester), diz que essa definição presume que “os dois grupos têm interesses irreconciliáveis, o que leva a enfatizar a soberania nacional ou popular”. O populista seria o sujeito que representaria a voz de toda a população.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, cientista político e ex-presidente da República Federativa do Brasil, considera que no período hodierno há um abuso da expressão populismo. 

Afirma que no século XX a caracterização de um populista era a de um chefe de estado, que ao assumir o poder, apelava às massas e passava por cima das estruturas partidárias. Nesse estado, detentor ou não de uma constituição, a força do chefe de estado seria tal que ele – de alguma maneira – teria poder de dirigir o conjunto do país. 

Ademais, menciona que havia uma característica peculiar de alguns populistas, como por exemplo do ex-presidente brasileiro Getúlio Vargas, qual seja a do apelo à parcela da população que se encontra fora do jogo político. Nesse contexto, Fernando Henrique Cardoso cita os discursos de Vargas, nos quais este se dirigia diretamente aos “trabalhadores brasileiros” (à época com pouca ou nenhuma representatividade no cenário político).

Atualmente, FHC acredita na extinção dessa característica, pelo menos no contexto do Brasil, de modo que o eleitorado brasileiro é extremamente amplo e diversificado, ao contrário do que ocorria na Era Vargas.

Por fim, o sociólogo alude ao sentido da expressão nos cenários europeu e norte-americano, os quais possuem uma conotação de populismo diversa à latino-americana. Isso porque, populistas seriam líderes que desrespeitam as regras do mercado e que praticam uma política mais heterodoxa na economia. Isso seria um conceito de populismo, pois essa conduta na economia implica na doação de recursos, de maneira direta, ao povo. Ao finalizar, o ex-presidente diz que os conceitos são vagos e servem pouco para caracterizar concretamente o que é ser populista. 

A onda populista em ascensão no século XXI

Imperioso salientar que a onda populista em ascensão atualmente na Europa e na América decorreu, conforme referido no artigo em análise, principalmente de dois fatores: a recessão de 2008 e a onda migratória – predominantemente de refugiados da guerra na Síria – para a Europa. Esses fatores, respectivamente, puseram em xeque o modelo econômico globalizado e a abertura à imigração praticados até então pela maior parte dos países que regem a economia mundial.

A definição de populismo no século XX aludida por Fernando Henrique Cardoso ainda se encaixa ao contexto atual. Isso porque, tomando como exemplo o cenário norte-americano, o presidente Donald Trump possui traços populistas no que diz respeito ao apelo às massas. Esse apelo ficou transparente nos discursos de Trump, durante e após a campanha eleitoral de 2016, principalmente em temas correspondentes às políticas econômicas, sociais e de imigração praticadas nas últimas décadas nos Estados Unidos, as quais o Presidente foi crítico veemente.

Em outras palavras, o descontentamento de grande parcela da população com o desemprego nos setores de baixa escolaridade, com a perda de competitividade de setores da indústria norte-americana para os chineses, o descontrole na imigração e a sensação de insegurança da população com as ameaças de terrorismo, fez com que o discurso de Trump (muitas vezes divergente dos ideais de um Estado de Direito) fosse aceito pela grande parcela insatisfeita da população norte-americana. Ademais, os baixíssimos índices de confiança nas instituições públicas, nos bancos privados, na imprensa e nos políticos – e isso não é uma peculiaridade do cidadão norte-americano – demonstram o pessimismo da população.  Esses fatores, além de serem as principais causas do ressurgimento populista, contribuem para o desenvolvimento gradativo desse movimento.

A recente ascensão do populismo, algo que parecia impensável há pouco mais de uma década, reforça uma tendência ao nacionalismo e ao protecionismo econômico, duas condutas as quais a história encarregou-se de demonstrar os riscos ao progresso econômico mundial e à democracia. Nesse viés, Cas Mudde aborda em sua obra a tensão entre populismo e democracia, na qual o aquele é simultaneamente inimigo e entusiasta desta.

Vale ressaltar que a adoção de políticas protecionistas pelas principais potências econômicas pode gerar um colapso econômico irreversível não só aos países emergentes, mas também aos desenvolvidos. 

Um claro exemplo disso foi a imposição de sobretaxas ao aço importado da União Europeia, praticado pelos Estados Unidos. Essa medida, além de deixar o aço mais caro na Europa, também surtiu efeito na América do Sul.

Outro aspecto importante que tem contribuído para essa ascensão é a polarização partidária e o declínio da imprensa suprapartidária. No caso dos Estados Unidos, os dois maiores partidos – Democrata e Republicano – parecem, segundo William Galston, estar cada vez mais distantes um do outro em suas ideologias, bem como menos abertos às opiniões contrárias. A imprensa por sua vez, tem mantido postura extremamente partidária, o que torna a propagação pura de informação mais difícil. 

A polarização partidária em um sistema não parlamentarista, como os Estados Unidos, leva a imposição de uma agenda política do partido com maioria representativa que pode desconsiderar os anseios das minorias. Um agravante, segundo Galston, é a extensão dos poderes presidenciais para além dos limites constitucionais, em nome da efetividade. Ressalta, por fim, que uma população impaciente se torna suscetível a abandonar as “amarras inerentes ao estado de direito”. 

Galston comprova isso com o resultado assustador de uma pesquisa realizada pelo “Public Religion Research”, em junho de 2016, a qual concluiu que 49% dos eleitores norte-americanos acreditavam que o “novo líder deveria estar disposto a violar algumas regras, se necessário for, para colocar o país novamente no caminho certo”. 

No que diz respeito a caracterização de um populista, William Galston complementa as definições de populismo de FHC, ao atribuir a característica de um político que critica as elites detentoras do poder, culpando-as pelas dificuldades enfrentadas pelo “cidadão comum”. 

Ao fim, o ex-assessor de Bill Clinton chama atenção ao discurso dos novos populistas, que dizem não ser uma ameaça à democracia por terem sido eleitos de maneira democrática. Segundo ele, não é esse o ponto que está realmente em jogo, mas sim a ameaça ao “conjunto de princípios que compõem a dimensão liberal da democracia contemporânea”. Complementa, ainda, que a principal ameaça à democracia liberal é a democracia iliberal, que poderia vir a se tornar uma autocracia”. 

Entretanto, Galston aduz que as democracias constitucionais já sofreram maiores ameaças do que as atuais e, apesar de temporariamente enfraquecidas, sobreviveram. Ressalta, no entanto: “A democracia liberal não é autossustentável. É uma conquista humana, não uma inevitabilidade histórica. Como toda criação humana, pode ser minada por dentro, quando aqueles que a apoiam deixam de defendê-la.

Desse modo, devemos estar atentos à ascensão do populismo não somente na Europa e na América, de modo que este movimento pode trazer danos irreversíveis às democracias liberais, em especial em seus princípios de liberdade e estado de direito, e ao sistema econômico globalizado. Por fim, vale ressaltar que o populismo vai de encontro às políticas culturais e econômicas praticadas pelas democracias liberais ocidentais, as quais proporcionaram um progresso mundial justamente em decorrência da ascensão da globalização, e, portanto, deve ser contido pela sociedade visando a preservação da democracia.

Bibliografia

  • GALSTON, William A., Anti-Pluralism: The Populist Threat to Liberal Democracy Politics and Culture, (Colaboradores: James Davison Hunter, John Malloy Owen), Editora: Yale University Press, 2017
  • MUDDE, Cas, Populism in Europe and the Americas: Threat Or Corrective for Democracy? Populism in Europe and the Americas: Threat Or Corrective for Democracy?, Cambridge University Press, 2012

Webgrafia

Experiências Constituintes

 

A experiência constituinte no Brasil

Analisaremos, de forma breve, a história da independência brasileira, o contexto das diferentes constituições e respectivos processos constituintes, a Constituição vigente e as suas revisões/emendas.

1. Breve referência à história da independência

“Independência ou morte!” foi o suposto eco de bravura de D. Pedro I no dia 7 de setembro de 1822. Teoricamente, a independência brasileira significaria a liberdade perante Portugal, contudo, há unanimidade entre os historiadores de que a independência não foi de facto uma liberdade, ou sequer um acto de coragem fundamentado na vontade do povo. Importa lembrar que, por um lado, embora se tenha “libertado” de Portugal, o Brasil tornou-se dependente economicamente da Inglaterra [i].
A colônia brasileira assistiu, em 1808, D. João VI e sua família fugirem para terras brasileiras, uma vez que Portugal se inseria em um cenário revolucionário causado pelas tropas napoleônicas. Todavia, sentindo o abandono político e econômico ocasionado pela fuga do Rei, os mais diversos estratos sociais portugueses iniciaram a Revolução do Porto em 1820 [ii], a qual se tornou um movimento extremamente liberal para Portugal, mas conservador para o Brasil, visto que os portugueses reivindicavam o retorno do status do Brasil como colônia (reestabelecimento do Pacto Colonial) e o retorno do Rei a Portugal.
Dessa forma, D. João VI se viu pressionado a retornar ao país de origem, deixando, portanto, seu filho D. Pedro I como príncipe regente do Brasil. O conflito continuou quando os portugueses exigiram o regresso também de D. Pedro I a Portugal, o qual respondeu com o famoso “Dia do Fico”, em 09 de janeiro de 1822. Entretanto, a pressão exercida por Portugal perdurou, até que no dia 07 de setembro do mesmo ano, D. Pedro declarou a independência diante das ameaças realizada pelos portugueses.
Em suma, o movimento de independência brasileiro não passou por um momento revolucionário, o qual teria na Constituição formal o reflexo da Constituição material vigente, mas consistiu na imposição da vontade do monarca que, após outorgar a primeira Constituição, utilizou dela para criar poderes absolutistas para si próprio (quarto poder: moderador), com o apoio da elite conservadora brasileira. Sendo assim, pode-se afirmar que não houve um processo representativo de facto, mas a outorga de valores que visavam beneficiar somente uma minoria privilegiada socialmente.

I. As Constituições e os Processos Constituintes

Como visto anteriormente, a primeira Constituição de 1824 foi outorgada pelo Imperador Dom Pedro I no contexto de instabilidade política tanto na colônia (Brasil), quanto na metrópole (Portugal). Dessa forma, ao Imperador era concedido o poder moderador [iii], no qual, segundo o art. 99 “A Pessoa do Imperador é inviolável e sagrada; ele não está sujeito a responsabilidade alguma”. Sendo assim, este poder atribuía ao Imperador o posto de chefe supremo do Estado brasileiro, uma vez que o poder moderador controlava todos os outros (legislativo, judicial e executivo).
Em seguida, a Constituição de 1891 foi promulgada pelo processo representativo diante do cenário no qual o Imperador D. Pedro II viu sua credibilidade ser desorientada, após assistir o decaimento do seu tripé de apoio, formado pela aristocracia agrária, Exército e Igreja Católica. Da aristocracia perdeu o apoio após a abolição da escravidão em 1888; dos militares após a Guerra do Paraguai e o sentimento de salvação nacional por parte dos guerreiros e da Igreja a partir da aprovação do Beneplácito e Padroado Régio. Desta forma, os militares decidiram tomar o poder e instaurar a República, processo que também não contou com a representação do povo, sendo apenas realizado conforme os moldes da elite privilegiada brasileira.
Já a Constituição de 1934, promulgada segundo o processo constituinte representativo com assembleia soberana, faz parte da Segunda República de Vargas pós Revolução de 1930, conflito que findou a República Velha. Depois da Revolução Constitucionalista de 1932, a Assembleia Constituinte redigiu uma nova constituição inspirada na Constituição alemã de Weimar e na Constituição Republicana espanhola de 1931. Todavia, esta Constituição teve limitada durabilidade, embora significasse um progresso no que tange a questão de direitos humanos, afinal, concedia leis trabalhistas, ampliava o direito de voto ao voto feminino, instituía o voto secreto, entre outros.
Todavia, o cunho progressista de Vargas decaiu quando o mesmo outorgou a Constituição de 1937, também conhecida por “Constituição Polaca”, a qual dava início ao Estado Novo no Brasil. Este período consistiu no cerceamento das liberdades individuais, na concentração de poderes nas mãos do Executivo, a dissolução de partidos políticos e símbolos dos Estados, supervalorizando a Federação, entre outros.
Sendo assim, em consequência dos desastres da Segunda Guerra Mundial [iv], a queda de Vargas resultou na redemocratização do país [v], o que garantiu a formação da Constituição de 1946, a qual foi promulgada através de processo constituinte representativo com assembleia soberana. Esta Constituição deu fim a pena de morte e a censura, restaurando os direitos e garantias individuais, representando uma gama de ideais liberais, como: direito a greve e livre associação sindical, pluralidade partidária etc.
Entretanto, a instauração de um regime militar levou ao país outro retrocesso, visto que fez o povo ter suas liberdades censuradas [vi]. Compôs-se de um governo autoritário que visava combater inimigos internos considerados subversivos (qualquer um que fosse contrário ao sistema) através da violência (torturas, mortes, entre outros tipos). Nasceu na Constituição semi-outorgada de 1967, e se “aperfeiçoou” na Emenda Constitucional de 69 (há discordância se pode ser chamada de “Constituição de 69”), quando os actos institucionais foram institucionalizados, tendo como maior exemplo o AI-5. Todavia, ainda não há unanimidade sobre a dualidade da discussão acerca do termo “outorgada” ou “semi-outorgada”, afinal, a Constituição de 1967 foi elaborada pelo Executivo e submetida ao Congresso Nacional para aprovação, contudo, este órgão era composto por membros designados pelo próprio Presidente.
O resultado deste período foi a atual promulgação por assembleia soberana da Constituição de 1988, a qual foi regulamentada inicialmente pelo regulamento interno da Assembleia Nacional Constituinte. Esta Constituição, portanto, amplia a gama de direitos e garantias fundamentais que foram extintos pelo período militar, desde a liberdade de expressão ao direito de greves, à pluralidade de partidos e, ainda, ao direito de voto por parte do povo.

II. A Constituição de 1988 e suas revisões

A Constituição brasileira de 1988 detém mecanismos de revisão e emendas constitucionais, sendo integrada nos moldes de uma constituição progressista. Não constitui, portanto, um corpo de todo rígido, mas também não é tão flexível ao ponto de mudar conforme as mudanças sociais, visto que há determinados requisitos necessários a serem preenchidos para sua revisão.
Sendo assim, a Constituição Brasileira de 1988 prevê, no artigo terceiro dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o seguinte: “A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”. Ou seja, prevê a possibilidade de apenas uma revisão constitucional, desde que respeite os limites temporais e procedimentais. Cabe ressaltar, nestas circunstâncias, as seis emendas constitucionais já realizadas: 1) Emenda de revisão constitucional de 01 de março de 1994, a qual acrescenta os arts. 71°, 72° e 73° ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; 2) Segunda emenda de revisão constitucional de 07 de junho de 1994, que altera o caput do art. 50° e seu § 2º, da Constituição Federal; 3) Terceira de 07 de junho de 1994, que altera a alínea “c” do inciso I, a alínea “b” do inciso II, o § 1º e o inciso II do § 4º do art. 12° da Constituição Federal; 4) Quarta de 07 de junho de 1994, que altera o § 9º do art. 14° da Constituição Federal; 5) Quinta de 07 de junho de 1994, a qual altera o art. 82° da Constituição Federal e 6) Por fim, a sexta de 07 de junho de 1994, a qual acrescenta o § 4º ao art. 55° da Constituição Federal.
Acresce que, no que tange o âmbito constitucional, embora a Constituição não possa mais ser revista por lei, visto que só era prevista uma única revisão (a qual foi realizada em 1994), vale lembrar que o art. 60° da CF permite a realização de emendas constitucionais, desde que respeitem os limites estipulados pelo mesmo. Neste sentido, a única forma de atualmente revisar a CF é através de emendas constitucionais, as quais podem ser realizadas mediante o cumprimento dos cinco parágrafos.
Conclui-se, portanto, a partir dos conceitos de constituição material e formal, que o constitucionalismo brasileiro não representou, na íntegra, o reflexo da constituição material, visto que até mesmo os momentos de redemocratizações foram realizados pela camada mais privilegiada da sociedade. Ou seja, as minorias sociais (no que consiste o termo sociologicamente dito), durante toda a história receberam imposições no que condiz ao âmbito jurídico, facto que justifica a maioria de movimentos sociais existentes de reivindicação de representatividade, como o movimento feminista brasileiro.

[i] Laurentino GOMES, 1808, Porto Editora, Porto, 2015, pp. 33 e 34.

[ii] Carta dirigida a ElRei pela Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, estabelecida no Porto, 1820. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242804.

[iii] AFONSO DA SILVA, José. O Constitucionalismo brasileiro – Evolução Institucional. 2011, Editora Malheiros, pág. 76.

[iv] SILVA, Tatiana Mareto. O constitucionalismo pós segunda guerra mundial e o crescente ativismo judicial no brasil: uma análise da evolução do papel do poder judiciário para a efetivação das constituições substancialistas. Disponível em:  https://www.conpedi.org.br/publicacoes/y0ii48h0/p9j98k25/8LFI2r64CVD8DSqU.pdf. Acesso em: 05/11/2017.

[v] AFONSO DA SILVA, José. O Constitucionalismo brasileiro – evolução institucional. 2011, Editora Malheiros, págs 83 e 84.

[vi] OLIVERI, Antônio Carlos. Censura: o regime militar e a liberdade de expressão. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/censura-o-regime-militar-e-a-liberdade-de-expressao.htm. Acesso em: 05/11/2017.

Texto produzido com os contributos de:

Maria Eduarda de Toledo Chiarelli
Aluna N.° 2017124644
e
Liliana Cláudia Ferreira Machado
Aluna N.º 2017260563

 

experiência constituinte em Moçambique

1. A independência

Os portugueses chegaram às terras que hoje compõe o território de Moçambique em finais do século XV.

No século XX, surgiram nas colónias portuguesas movimentos de libertação, aos quais Portugal resistiu, arrastando o país para uma Guerra Colonial (Conhecida como Guerra de Libertação, pelos povos africanos). Em Moçambique, a guerra começou em 1964, opondo as forças militares portuguesas à FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique)[1]. Este conflito armado, que se arrastou por dez anos, fez mais de sessenta mil mortos, entre portugueses e moçambicanos.

Com o fim do regime ditatorial em Portugal, na sequência da Revolução de 25 de abril de 1974, a visão da metrópole face às colónias modificou-se e iniciou-se um período de conversações entre Portugal e os movimentos de libertação, que resultou, no caso de Moçambique, em Setembro desse mesmo ano, no acordo de Lusaka, no qual Portugal reconhecia o direito à independência deste país.

Assim, Moçambique acabou por declarar a independência a 25 de Junho de 1975.

2. As constituições

A Constituição da República Popular da Moçambique (de 1975) entrou em vigor no mesmo dia em que Moçambique se tornou independente e sofreu depois diversas alterações, primeiro em 1976 e 1977, alterações aprovadas, respectivamente, na 8.ª Reunião e na 2.ª Sessão do Comité Central da FRELIMO, e, posteriormente, quatro alterações aprovadas pela Assembleia Popular, através dos seguintes actos: Lei n.º 11/78 de 15 de Agosto; Resolução n.º 11/82, de 1 de Setembro; Lei n.º 1/84, de 27 de Abril; e Lei n.º 4/86, de 25 de Julho.

Após a independência, o país passou por uma guerra civil, que levou a que, ainda no decorrer da mesma, fosse aprovada uma nova constituição, a Constituição da República de Moçambique (de 1990). Em 1991, para Jorge Miranda «as circunstâncias de guerra (…) leva(va)m a considerar esta Lei Fundamental, com alguma prudência, como provisória»[2]. Esta Constituição foi objecto de revisões constitucionais em 1993, 1996 e 1998.

De facto, em 2004, já após o fim da guerra civil, foi aprovada uma nova constituição, a Constituição da República de Moçambique (de 2004), que entrou em vigor no dia 21 de Janeiro de 2005 e que ainda hoje se encontra em vigor, com a alteração introduzida pela Lei n.º 26/2007, de 16 de Novembro.

3. Procedimentos constituintes

A primeira constituição moçambicana, como já se disse, entrou em vigor aquando da independência do país e foi um “produto” do Comité Central FRELIMO, que a elaborou e, de modo autoritário, a impôs ao povo moçambicano.

Em 1978, o poder constituinte passou para a Assembleia Popular. Por este motivo, a Constituição de 1990 foi já elaborada por este órgão. No entanto, e apesar de a Assembleia Popular ter poder para elaborar e aprovar a constituição, este processo constituinte não foi verdadeiramente representativo, pois os seus membros não foram eleitos pelo povo, eles eram representantes do partido único da altura, que correspondia à FRELIMO.

Em 2004, o processo constituinte foi conduzido pela Assembleia da República (denominação adoptada pela Assembleia Nacional Popular desde 1994), podendo já qualificar-se como representativo e soberano, pois a Assembleia tinha poder para elaborar e aprovar a constituição.

[1] Fundada em 1962, a FRELIMO era o resultado da união de três movimentos independentistas: a UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), a MANU (Mozambique African National Union) e a UNAMI (União Nacional de Moçambique Independente).

[2] Cf. MIRANDA, Jorge, As Novas Constituições – Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Moçambique, Lisboa, 1991, p. 9.

Texto produzido com os contributos de:

Xavier Silva Oliveira

Aluno N.º 2017253376

 

Um “experiência constituinte” sui generis: a Região Administrativa Especial de Macau

Macau é, desde 20 de Dezembro de 1999, uma região chinesa de administração especial, sendo essa a data da descolonização oficial portuguesa na região (vigente desde meados de 1557). Macau passou então a ser um território administrado pela China, embora possuindo um grau de soberania considerável face àquele país, segundo o seu estatuto de Região Administrativa Especial (RAEM) aprovado pela respectiva lei básica.

Em 1966, ocorreu em Macau o famoso Motim 1-2-3, provado por chineses pró-comunistas, seguidores dos ideais de Mao Tsé-Tung. Esse motim teve repercussões na moral dos portugueses administradores de Macau, que renunciaram à ocupação portuguesa da região, e, dessa forma, delinearam o fim do colonialismo macaense. Contudo, só em 1999, com a ‘Declaração Conjunta Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau’, é que a soberania da região foi outorgada à República Popular da China, sendo então igualmente definido o estatuto especial de Macau.

Sendo uma região autónoma chinesa, Macau possui a sua própria legislação superior: a já mencionada Lei Básica da Região Administrativa de Macau, que é “equiparável” a uma forma sui generis de ‘constituição macaense’. A Lei Básica tem como base a ‘Declaração Conjunta Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau’, a já existente ‘Lei Básica de Hong Kong’ (que é, juntamente com Macau, uma região administrativa especial chinesa) e o Artigo 31º da Constituição da República Popular Chinesa, que representa juridicamente o princípio político de “um país, dois sistemas”. A Lei Básica de Macau define princípios básicos da região e da sua população, e estrutura de forma regulamentar os poderes da RAEM. Foi aprovada e promulgada a 31 de março de 1993, e entrou em vigor a 20 de dezembro de 1999.

Assim, Macau rege-se essencialmente pela sua Lei Básica, embora, em conformidade com o disposto no artigo 31º da Constituição da República Popular da China, não deixe de ser apenas uma Região Especial do Estado Chinês. O que se torna especialmente visível se tivermos em conta que cabe ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional a interpretação da Lei Básica da RAEM.

De acordo com o disposto no artigo 144º da Lei Básica de Macau, as revisões àquele instrumentos normativo são realizadas exclusivamente pela Assembleia Nacional Popular e o poder de apresentar propostas de revisão pertence ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, ao Concelho de Estado e à Região Administrativa Especial de Macau.

A Lei Básica difere das Constituições no sentido em que, apesar de poder conter em si princípios e regras universais que vinculam o território sob o seu regime administrativo especial, ela não está, verdadeiramente, no topo da ‘pirâmide normativa’, pois o regime “um país, dois sistemas”, só assegura um grau muito significativo de autonomia, não admitindo soluções que possam representar uma violação do conteúdo essencial da Constituição Chinesa.

Assim, a Lei Básica está subordinada à Constituição da República Popular da China – ou seja, a Lei Básica não goza do estatuto de norma absoluta e suprema. No entanto, a circunstância de a Lei Básica das Regiões Administrativas Especiais conferir e proteger certas liberdades e direitos especiais, apesar da sua base legal ser a Constituição Chinesa, permite compreender que se trata, também, de uma “carta de direitos” que opera, a seu modo, e durante a sua vigência, com uma função contra-mioritária.

 

Textos consultados

LOK, Wai Kin – A Constituição e a Lei Básica são base constitucional da Região Administrativa Especial, Administração n.º 88, vol. XXIII, 2010-2.º, 383-395

 

Texto produzido com os contributos de:

Sofia Albuquerque Sousa Gonçalves

Aluna Nº 2017255460

Catalunha

A “questão catalã” ou a “independência da Catalunha”, como já foi cunhada pelos órgãos de comunicação social, é um assunto actual e que permite aos alunos de direito constitucional “testar” alguns conceitos operatórios apreendidos logos nas primeiras aulas: o que é uma Constituição? O que é o poder constituinte originário e derivado? Em que é que consiste a força normativa da Constituição? Como é que a Constituição protege a ordem jurídica vigente perante movimento de ruptura? O que são as transições e as mutações constitucionais? Como actua o constitucionalismo revolucionário? Quem é o sujeito da Constituição? Como se legitima o poder constituinte? Que limites podem ser hoje apontados ao poder constituinte originário? Os espaços de integração política e económica contribuem para modificar o sentido actual do poder constituinte originário e derivado?

Pedi aos meus alunos do 1.º ano de direito constitucional que fossem investigar a história da Catalunha, a história do constitucionalismo espanhol, o ambiente político, social e económico em que foi aprovada a Constituição Espanhola de 1978 e o seu procedimento constituinte, o que dizem os constitucionalistas espanhóis sobre o artigo 155.º da Constituição, qual o valor da “declaração unilateral de independência” votada pelo  Parlamento da Catalunha no dia 27 de Outubro de 2017 e qual o papel do Tribunal Constitucional Espanhol em todo este processo….

 

 

I – História da Catalunha e do processo independentista

A maior parte das cidades catalãs foi fundada no séc. I a.C. por Augusto, durante a romanização da Península Ibéria. É o caso, entre outras, de Gerunda [hoje Gerona], Ilerda [hoje Lérida] e Barcino [hoje, Barcelona][i]. Mais tarde, quando os visigodos se instalam na Península e fundam o Reino de Toledo (567 a 711), Barcelona seria a sua primeira capital durante o período de ocupação da Hispânia. A este propósito podemos notar que o sistema político dos Visigodos – a Res Publica Cristiana – se baseava num rei eleito pela aristocracia e pelo reconhecimento de direitos e deveres públicos regulados no Código Visigótico.

No século VIII (711), os muçulmanos invadiram a Península Ibérica, conquistando uma grande porção de território  e fundando o Emirado de Córdova, que mais tarde, em 929, daria origem ao Califado de Córdova, quando o emir Abd Al-Rahman se autoproclama califa. O avanço dos muçulmanos neste período permite-lhes ocupar cidades como Lérida, Gerona e Barcelona ainda entre 712 e 720. São, contudo, travados em Poitiers, em 732, pelas tropas de Carlos Magno e é o Império Carolíngio que impulsiona a reconquista dos territórios. A cidade de Barcelona é conquistada por Ludovico Pío (neto e sucessor de Carlos Magno) em 801.

É nesta fase que se estabelece a Marca Hispânica para designar o território que separa o domínio muçulmano do Império Carolíngio e é também entre os séculos IX e X que se erguem naquela zona diversos castelos e outras edificações muralhadas que hão-de posteriormente, segundo umas das teorias vigentes, dar origem ao nome de Catalunha [terra de castelos]. Estes territórios conquistados aos árabes pelo Império de Carlos Magno começam a ser povoados por condes indicados pelo Imperador. É assim com Guifré el Pilós primeiro Conde de Barcelona, Gerona, Cerdaña e Conflent, que é também o último nomeado directamente pelo Rei francês. Após a sua morte em 897, numa batalha com os muçulmanos, os seus filhos decidem repartir entre si o território e Guifré II, o primogénito, converte-se em Conde de Barcelona e Gerona, embora ainda com a aprovação e a protecção do Rei.

É em finais do século X, com Borrell II, à data conde de Barcelona, que surge a independência do Condado de Barcelona, fruto de um pacto então estabelecido com o califado de Córdova para garantir a paz no território. Entretanto, durante os séculos X e XI, o Califado de Córdova divide-se, em resultado de lutas internas, e os sucessivos condes de Barcelona tentam ampliar os seus territórios sem sucesso. A paz surge no contexto da união com o Reino de Aragão, quando em 1131 o conde Ramón Berenguer IV da Catalunha é prometido a Petronila, filha do rei de Aragão e, em 1164, Afonso II de Aragão, filho destes, unifica os territórios do Reino de Aragão e do Principado da Catalunha, sob a mesma dinastia (casa dos Condes de Barcelona), mantendo a Catalunha não apenas a sua autonomia (a Catalunha, neste período, tinha tradições, leis, instituições políticas e moeda próprias), como ainda uma certa hegemonia, por de ser o território mais rico.

Em 1283, Pedro III de Aragão (filho de Jaime I, que era neto de Afonso II e filho de Pedro II), intervindo em prol dos interesses de sua esposa, filha do rei da Sicília, conquista a ilha, que havia sido invadida pela casa real francesa, numa tentativa de alargar a sua influência no mar Mediterrâneo. O Papa Martinho IV excomunga o rei aragonês e entrega a Catalunha a Carlos de Valois, filho do rei Filipe III de França, que a invade, mas acaba por se retirar em 1284, derrotado por Afonso III (filho de Pedro III). A paz com França é selada através do casamento de Afonso III com Branca, filha de Carlos II de Anjou, um enlace que, no contexto do tratado de Anagni (1295) permite também levantar a excomunhão da Casa de Barcelona. São desta época as primeiras codificações de regras adoptadas pelas Cortes de Barcelona a que dão o nome de primeiras constituciones catalanas.

O reinado da casa de Aragão-Barcelona termina com a morte de Martín I em 1410. Abre-se um processo de sucessão que culmina com a indicação de Fernando I (Fernando de Antequera) nas deliberações de Caspe em 1412. Começa assim o reinado da Casa de Aragão e Trastâmara.

Em 1469, com o casamento dos reis católicos (Fernando de Aragão e Isabel de Castela), as Coroas de Aragão – incluindo a Catalunha – e Castela passam a estar unidas, apesar de os dois Reinos manterem as suas instituições políticas separadas a nível interno. Embora muitos apontem este momento como o início da unidade da Espanha, tal não sucede na prática, uma vez que os reinos continuam a funcionar de forma independente, com a única excepção para o Tribunal da Santa Inquisição, que passa a ser única instituição comum a ambos[ii]. As revoltas dentro da Catalunha (que têm grande tradição desde a época do domínio muçulmano)  são constantes ao longo do reinado da Casa de Aragão e Trastâmara, sendo a promulgação da Constituição Com per lo Senyor (1481), apenas um exemplo destes movimentos[iii].

Com a morte do rei católico Fernando II, sucede-lhe Carlos I na Coroa de Aragão, o filho de Joana a Louca, que é também Carlo V o Imperador do Sacro Império Romano Germânico. Os duzentos anos do reinado da Casa de Habsburgo, que não são isentos de problemas no Principado da Catalunha. As revoltas devem-se sobretudo à contestação de medidas implementadas por Felipe II (Felipe I de Catalunha e Aragão) nas áreas da educação e da tributação, o que leva o monarca nas Cortes de 1585, na tentativa de apaziguar os ânimos, a ordenar a publicação do sistema constitucional catalão e a aprovar o Redreç de la Generalitat, que institui as divuitenes como forma de controlar aspectos económicos daquele território. Nos reinados de Felipe III e Felipe IV (Felipe II e Felipe III de Catalunha e Aragão, respectivamente) a situação agrava-se com a tentativa de impor uma tributação mais elevada na Catalunha e com a constante reclamação de verbas para financiar a crise económica em Castela.

Em 1640, a Catalunha revolta-se contra a coroa espanhola. O mal-estar tem origem nas políticas do Conde-Duque de Olivares[iv], mas o episódio que despoleta Corpus de Sangre é a presença na Catalunha de militares castelhanos e milícias ao seu serviço no contexto do combate entre Espanha e França. É esta revolta na Catalunha e a presença de tropas espanholas nessa região que veio permitir que Portugal conseguisse levar a cabo a restauração da independência. Em 1652, Espanha põe fim à revolução catalã, mas o nacionalismo, para muitos, fica instalado na região.

Já mais tarde, durante a Guerra da Sucessão Espanhola (1679), a Catalunha apoiou a Casa de Habsburgo em vez da Casa de Bourbon e celebra até um tratado com Inglaterra para manter o apoio ao arquiduque Carlos.  Por este motivo, perto do final da guerra, já com a vitória quase garantida, as forças apoiantes da Casa de Bourbon cercaram Barcelona, resultando na morte de vinte mil pessoas. Com a vitória desta casa real, Felipe V não perdoa e impõe o Decreto de Nueva Planta, que retira a autonomia da Catalunha impõe o fecho do seu parlamento e a proibição do catalão para os funcionários do Estado.

No século XIX, com a recuperação económica da região, o sentimento nacionalista retorna à Catalunha, mas de forma ainda tímida, pois nas Cortes de Cádis os deputados catalães aceitam o articulado da Constituição de 1812 que faz referência a uma Nação espanhola una.

No século seguinte, toda a Espanha entra em crise, devido aos mais variados fatores, entre os quais o aumento demográfico e o surgimento de novas forças políticas. No caso da Catalunha essas forças políticas são a Lliga Regionalista, que agrupa uma parte da burguesia com aspirações autonómicas (a direita independentista), e, de outro lado, o movimento obreiro (UGT e CNT). Durante a ditadura de Primo de Rivera, uma parte mais radical do movimento catalão desagrega-se e funda a Acció Catalana ao mesmo tempo que o governo ditatorial retira poderes à Catalunha, dissolve a mancomunitat e proíbe os símbolos catalães.  Em 1931, é proclamada a Segunda República Espanhola e a Catalunha ganha novamente alguma autonomia, com a criação do seu governo regional (a Generalitat). É também neste período que as esquerdas se organizam e criam a Esquerra Republicana de Catalunya. Durante a Guerra Civil Espanhola, a Catalunha fundou a República Catalã e, assente no “poder duplo” (a rua controlada pelos anarquistas e as fronteiras e as instituições pela Generalitat), consegue fazer oposição ao regime franquista. Mas este acaba por vencer e, uma vez mais, todos os poderes autonómicos são retirados à Catalunha. Neste caso não se tratou apenas de uma revogação do poder de auto-administração e de organização política, Franco limitou também o acesso da Catalunha a diversos recursos escassos, como a energia, conseguindo desta forma controlar o próprio desenvolvimento económico naquele território. Com o fim da Guerra Civil, Franco instaura um novo regime político que perdurará até 1975.

Em 1975, Juan Carlos é aclamado rei de Espanha e o processo de democratização é iniciado. Na Constituição Espanhola de 1978 está consagrada a divisão da Espanha em Comunidades Autónomas, as quais podem adoptar uma língua oficial própria (além do castelhano), a fixar nos respectivos estatutos, e dotar-se de instituições políticas próprias, entre outros aspectos.

É importante lembrar que durante o período da Guerra Civil muitos independentistas optaram pelo exílio e é a partir daí que se reorganizam no novo ciclo político-constitucional. É nesta fase que surge a Comissão Coordenadora das Força Políticas da Catalunha, que agrupa força políticas tão diversas como a Front Nacional de Catalunya (movimento de direita), a Unió Democràtica (o centro-direita cristão) e o Moviment Socialista de Catalunya (social-democracia). Na preparação das eleições democráticas as força políticas voltam a reorganizar-se e o centro-direita, que inicialmente contava apenas com o partido Convergència Democràtica de Catalunya, dirigido por Jordi Pujol, alia-se aos democratas cristãos da Unió Democràtica, dando origem à coligação Convergencia i Unió. Os socialistas e sociais democratas também se reorganizam em conjunto com os republicanos no Reagrument Socialista i Democràtic de Catalunya.

No século XXI, o nacionalismo catalão aumenta. Em 2006, a Catalunha conseguiu ver a sua autonomia reforçada com a aprovação de um novo Estatuto (Estatuto de autonomía de Cataluña). Isso não foi suficiente para acalmar o ímpeto independentista e em 2014 realizou-se um referendo sobre a independência da Catalunha, o qual obteve 80% dos votos a favor de a Catalunha ser um Estado (independente ou não).

A crise agravou-se com os resultados das eleições de 2015, em que o Movimento Juntos pelo Sim, uma coligação que agrupa diversos partidos independentistas de todos os espectros ideológicos, alcança 39,6% dos votos e acaba por aliar-se à Catalunha Sim Se Pode (uma coligação de esquerdas, da qual faz parte o Podemos, formada em 2015, com base no ideário independentista), que obteve 8.9% dos votos, e à Candidatura de Unidade Popular (um partido político de esquerda e independentista, que assenta em assembleias populares), que obtivera 8,2 dos votos, para formar um pacto pela independência.

Segue-se um processo político complexo, com diversos diplomas e resoluções aprovados contra as normas da Constituição.

Texto produzido com os contributos de:

Xavier Silva Oliveira (Aluno n.º 2017253376)

 

Referências bibliográficas

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KAMEN, Henry, España y Cataluña: Historia de una Pasión, La Esfera de los Libros, Madrid, 2014.

PÉREZ DE LOS COBOS, «La primera revolución del campesinado español. Payeses de remensa», Anales de la Universidad de Murcia (Derecho), Vol. XXX Núm. 3-4, recurso on-line [http://revistas.um.es/analesumderecho/article/view/104681/99611].

 

Outras fontes

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LIMA, António Saraiva – História da Catalunha. Relato de uma submissão indesejada [Em linha]. Comunidade Cultura e Arte, 2017. [Consultado a 10/11/2017]. Disponível em: http://bit.ly/2i12lL3

Coroa de Aragão [Em linha]. Wikipédia, 2017. [Consultado a 10/11/2017]. Disponível em: http://bit.ly/2i1Mg7H

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Estatuto de autonomía de Cataluña [Em linha]. Parlement de Catalunya, 2013. [Consultado a 10/11/2017]. Disponível em: http://bit.ly/2zwhrCe

LORENA, Sofia – 80% dos catalães que votam dizem “sim” à independência [Em linha]. PÚBLICO, 2014. [Consultado a 10/11/2017]. Disponível em: http://bit.ly/2zyMFGf

 

Notas

[i] David AGUSTI, Historia de Cataluña, Sílex Ediciones, 2014

[ii] Historia de España [Em linha]. La Moncloa. [Consultado a 10/11/2017]. Disponível em: http://bit.ly/2i1OlAG

[iii] PÉREZ DE LOS COBOS, «La primera revolución del campesinado español. Payeses de remensa», Anales de la Universidad de Murcia (Derecho), Vol. XXX Núm. 3-4, recurso on-line [http://revistas.um.es/analesumderecho/article/view/104681/99611].

[iv] Henry KAMEN, España y Cataluña: Historia de una Pasión, La Esfera de los Libros, Madrid, 2014.

 

II – A História do Constitucionalismo Espanhol

A primeira Constituição Espanhola, propriamente dita, é a Constituição de 1812, que marca o início do constitucionalismo espanhol, o que, como veremos, não retira interesse ao Estatuto de Baiona de 1808. Ao todo existiram sete textos constitucionais oficiais na história espanhola contando com a vigente Constituição de 1978: as quatro primeiras, de 1812, 1837, 1845 e 1869; e as outras três, de 1876, 1931, 1978. As sete constituições encontram-se divididas em dois grupos, porque entre a Constituição de 1869 e a Constituição de 1876 existiram outras experiências constituintes menos relevantes.

Em Espanha, à semelhança de todas as experiências constitucionais, as principais matérias que são objecto de normação pela lei fundamental são os direitos fundamentais, as garantias institucionais, os mandatos ao legislador e os princípios fundamentais do Estado. É com base nestes pressupostos que analisaremos brevemente cada uma das constituições espanholas. No entanto, daremos especial relevância à região recentemente autoproclamada independente de Espanha, a Catalunha, e, portanto, à Constituição Espanhola de 1978, que possui legislação determinante acerca do estatuto das Regiões ou Comunidades Autónomas Espanholas.

Em 1808, surge em Espanha uma base para o que seria o seu constitucionalismo nos séculos que se seguiriam: o Estatuto de Baiona. Uma carta outorgada por José Bonaparte e que, como o próprio nome faz prever, não nasceu livre de interesses. Foi uma forma de o seu irmão, Napoleão Bonaparte tentar acabar com o absolutismo em Espanha e procurar submeter esta ao seu autoritarismo, bem como concentrar nas suas mãos a soberania espanhola. Conseguiu, pelo menos, trazer coisas boas, nas palavras de José Agustín González-Ares, esta “constituição” foi “o primeiro instrumento constitucional com que se pretendeu fazer frente ao derrubamento do Antigo Regime”. Trouxe para Espanha a ideia de liberalismo, ao conceder aos cidadãos uma relação de direitos e liberdades anteriormente não consagradas. Neste estatuto permanecia a religião oficial do Estado e o seu carácter confessional. O poder executivo residia no rei, e surgem a figura dos ministérios, do Senado e do Conselho de Estado, órgãos que serviam como conselheiros. O poder legislativo pertenci ao Rei e às Cortes, constituídas pela nobreza, clero e povo, mas a iniciativa legislativa residia no Conselho de Estado. Já o poder judicial era exercido por juízes nomeados pelo rei. Aí se consagra ainda a obrigação da publicidade do processo penal, para evitar injustiças. São suprimidos os tribunais especiais e programada a primeira unidade de códigos, numa tentativa de positivar o direito e estabelecer alguns direitos e deveres. Este estatuto nunca foi aceite como uma constituição, nem pelos autores actuais nem pelos espanhóis da época, que nunca gostaram do carácter ‘afrancesado’ do documento.

A Constituição de 1812 (de Cádis ou La Pepa), elaborada e aprovada pelas Cortes Constituintes convocadas em 1810, foi, como antes dissemos, a primeira constituição espanhola e teve uma grande influência internacional. Fez surgir em Espanha os princípios da soberania popular e a separação de poderes, para além de instaurar um Estado de orientação liberal em Espanha. Este extenso texto previa a soberania nacional, através das Cortes, que detinham o poder executivo. Já o poder legislativo pertencia às Cortes e ao Rei, tendo ele o poder de sanção e promulgação das leis. O poder judicial era exercido pelos tribunais.

Esta Constituição, que teoricamente vigorou até 1837, foi rejeitada por Fernando VII dois anos após a sua entrada em vigor. O monarca dissolveu as Cortes e, com um golpe de Estado, reinou como absolutista em Espanha até 1820. Em 1820, Fernando VII não conseguiu conter a revolta e viu-se forçado a jurar a Constituição de 1812 e voltar a ser um Monarca constitucional. Em 1823, porém, volta a rejeitar a subordinação à Constituição e passa novamente a governar como rei absolutista durante a denominada década ominosa. Com a sua morte, em 1833, a viúva assume a governação do reino até a herdeira ser maior de idade. Em 1934, a Rainha outorgou o Estatuto Real, sem que o mesmo tivesse sido aprovado pelas Cortes. O documento tinha como objectivo atrair os conservadores ao projecto ideológico da Rainha, ao mesmo tempo que aparentava fazer cedências liberais. Mas não garantia liberdades nem voltava a estabelecer a separação dos poderes, mantendo a sua concentração na Rainha, sendo os restantes órgãos meros conselheiros. Este Estatuto foi marcado pela primeira moção de censura, aplicada em 1836, o que levou às eleições de 1837 onde a ala progressista triunfou e elaborou a Constituição de 1837.

A Constituição de 1837 não possuía mudanças radicais em relação à sua anterior, no entanto nota-se o crescente poder da família real, a quem é conferido um poder moderador. Contudo, a exemplo da Constituição de 1812, reconhece vários direitos e liberdades sociais ao povo, incluindo a liberdade de culto.

A pressão progressista, liderada pelo general Espartero, leva à demissão da Rainha regente, deixando-o a liderar um governo provisório. Também ele acabaria por ser obrigado ao exílio por uma facção progressista. Em 1843, José Maria López forma um governo provisório, mas desta vez com o único propósito de convocar eleições para umas Cortes constituintes, que culminaram com a aprovação da Constituição de 1845.

A Constituição de 1845 é marcadamente moderantista, o que torna o governo espanhol estritamente elitista, favorecendo o poder real comparativamente às suas antecessoras.

Seguiram-se períodos de instabilidade de grande rotatividade nos Governos, que culminaria com a formação de um governo O’Donnel e Serrano, presidido pelo segundo, que convocou eleições para novas Cortes Constituintes. Porém, o seu resultado – a Constituição de 1856 – nunca chegou a estar vigente, não tendo sido promulgada pela Rainha.

De 1856 a 1869 continuou a instabilidade política e em Janeiro de 1869 foram convocadas eleições para novas cortes constituintes, após o exílio de Isabel II em França (fruto de uma conduta desprestigiante e irresponsável, que tinha feito com que esta perdesse a sua credibilidade junto do povo). As cortes terminaram os trabalhos em Junho do mesmo ano, com a aprovação da Constituição de 1869.

A Constituição de 1869 acaba definitivamente com o governo autocrata de Isabel II, rainha favorecida com as duas constituições anteriores. Institui em Espanha um regime monárquico constitucional, reconhecendo entre outras coisas o direito à liberdade religiosa, de expressão e de reunião, até então interditas, e reafirma o princípio da divisão dos poderes.

Esta fica conhecida pelo seu carácter jusnaturalista racionalista, por consagrar direitos inerentes à pessoa humana, tais como: direito de associação e liberdade de culto. Os republicanos, contudo, não se conformaram com o conteúdo da Constituição, e a sua pressão, juntamente com o problema cubano de abolição da escravatura, estiveram na origem da 1.ª República. Castelar, num discurso na Assembleia Nacional, afirma o seguinte: “Con Fernando VII murió la Monarquía tradicional, com la fuga de doña Isabel, la Monarquía parlamentaria, com la renúncia de don Amadeo de Saboya, la Monarquía democrática. Nadie há acabado com ella, ha muerto por si misma. Nadie trae la República, la traen todas las circunstancias.”

Surge assim o projeto de Constituição federal de 1873, numa tentativa de aproximação ao modelo norte-americano de organização política. Esta República não havia de durar muito tempo, e em 1874 já a Monarquia tinha sido reinstaurada pelo exército, através do ‘Manifesto de Cánovas’ que definia a Monarquia como ‘Constitucional, hereditaria y representativa’. Em 1875, Afonso XII, legítimo Rei, chegava a Madrid e confirmava Cánovas como primeiro ministro. A Constituição apenas surgiu em 1876. As eleições para as Cortes Constituintes contaram com 60% de abstenção, mas mesmo assim os deputados foram nomeados. A Constituição de 1876 teve a maior longevidade de todas, vigorando até 1931, e não trouxe grandes alterações em Espanha, nem dotou o Estado de mecanismos capazes de enfrentar a ‘questão social’ e as tensões separatistas, salvo o sufrágio universal masculino.

Durante a sua vigência teve lugar o golpe de Estado de Primo de Rivera, em 1923, que instaurou uma ditadura militar, dissolveu as cortes e mandou convocar uma Assembleia Nacional. Com a sua demissão em 1930, foram convocadas eleições legislativas que fundamentaram o poder dos republicanos e com eles a instauração, pela segunda vez, da República.

Esta República apoiar-se-ia na Constituição de 1931, uma Constituição republicana que consagrava a soberania nacional, o sufrágio universal (pela primeira vez universal no verdadeiro sentido da palavra, incluindo o sexo feminino) e o monocameralismo das Cortes, órgão que legislava e controlava o Governo. O Presidente da República nomeava o presidente do Governo e também neste momento que surge o Tribunal de Garantias Constitucionais, que garantia a submissão de todos os poderes, incluindo o legislativo, à Constituição. O liberalismo é simbolizado no direito de criação de sindicatos, liberdade de culto, introdução do divórcio e laicismo nas escolas. Esta constituição foi considerada ‘lamentável’, mas esteve em vigor até à Guerra Civil Espanhola.

Com o fim do “franquismo” e a dissolução das Cortes franquistas em 1977, fruto da Lei para a Reforma Política, regressa a Espanha o modelo de monarquia constitucional, que é consagrado na Constituição de 1978. A Constituição foi ratificada em referendo, sancionada pelo Rei e publicada no Boletim Oficial do Estado de 29 de Dezembro do de 1978.

A Constituição de 1978 foi construída numa atmosfera política e doutrinal muito distinta das suas precedentes históricas. Possui ao todo 169 artigos e segue um modelo económico de tipo neokeynesiano, mas acima de tudo adopta uma organização política baseada na ideia de “uma nova conceção política da própria configuração administrativa e territorial de Espanha”, ou seja, tendo também em conta os povos autónomos dos territórios anexados à Espanha (Espanha consagra-se então “Estado das Autonomias”).

Com esta constituição, oficializa-se a chamada ‘Transição Espanhola’. Estabelece-se uma organização territorial alicerçada na autonomia de municípios, províncias e Comunidades Autónomas, havendo entre todos um princípio de solidariedade. Segundo o artigo 2º da Constituição Espanhola, todas as nacionalidades e regiões componentes do Estado possuem o direito à autonomia. Uma autonomia que, contudo, de acordo com a letra do mesmo artigo, tem de ajustar-se ao pressuposto de que “La Constitución se fundamenta en la indisoluble unidad de la Nación española”.

Texto produzido com os contributos de:

Sofia Albuquerque Sousa Gonçalves (Aluno n.º 2017255460)

Tiago Miguel Pereira Belinha (Aluno n.º 2017268294)

 

Referências bibliográficas

ALARCÓN CARACUEL, Manuel Ramón, «Veinte Años de Ordenamiento Laboral y de Seguridad Social», in 20 Años de Ordenamiento Constitucional – Homenaje a Estanislao de Aranzadi, Aranzadi Editorial, 1999, pp. 19-74

ÁLVAREZ CONDE, Enrique, «La incidencia de la Constitución en el ordenamiento jurídico», in Administraciones Públicas y Constitución – Reflexiones sobre el XX Aniversario de la Constitución Española de 1978, INAP, Madrid, pp. 19-36

GONZÁLEZ, Esther, «El Modelo Democrático Español: Marco Institucional, Derechos Humanos y Participación Ciudadana», in La España de la Modernidad – La Constitución de 1978, las libertades civiles y la democracia plural, Editorial Dykinson, Madrid, 2005, pp.  

GONZÁLEZ-ARES FERNÁNDEZ, José Agustín, Introducción al estudio del constitucionalismo español 1808-1975, Andavira Editora, 2003

MARTÍN REBOLLO, Luis, «Veinte Años de Derecho Administrativo Postconstitucional», in 20 Años de Ordenamiento Constitucional – Homenaje a Estanislao de Aranzadi, Aranzadi Editorial, 1999, pp. 239-354

VILLAPALOS SALAS, Gustavo, «La Constitución española de 1978 en el constitucionalismo histórico español», in Administraciones Públicas y Constitución – Reflexiones sobre el XX Aniversario de la Constitución Española de 1978, INAP, Madrid, pp. 37-42

 

Sítios consultados

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https://es.wikipedia.org/wiki/Constituci%C3%B3n_espa%C3%B1ola_de_1876

https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitui%C3%A7%C3%A3o_espanhola_de_1931#Cr.C3.ADticas_.C3.A0_Constitui.C3.A7.C3.A3o_de_1931

https://archive.org/stream/encyclopdiabri20chis

http://www.cervantesvirtual.com/

https://www.youtube.com/watch?v=mffesJz8Iq8

https://www.youtube.com/watch?v=xXCLZgEfNbo

 

IIIa Revolução e direito

Em relação ao tema que nos foi proposto, começamos por refletir sobre o artigo 19.° da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), que permite a suspensão do exercício de alguns direitos nos casos de declaração de estado de sítio ou estado de emergência. Este instituto jurídico transmite a noção de que, se todos os direitos fossem garantidos diante de um movimento revolucionário, o caos predominaria.

A admissibilidade de um mecanismo de suspensão do exercício de direitos e garantias previsto pela Constituição que institui um Estado de Direito permite-nos concluir que em momentos revolucionários a suspensão do próprio direito é necessária. A revolução, embora vista negativamente, pode ser considerada, nos factos que envolvem o meio jurídico, a oportunidade que os legitima. Segundo Castanheira Neves: “Será porventura a revolução a oportunidade que os explica, mas não seria fundamento que os legitime”[i].

Arendt afirma que a revolução acontece quando “a história começa subitamente no novo”[ii]; deste modo, a própria legalidade estabelecida pelo Estado de Direito acaba por ter-se como suspensa, uma vez que impera, na revolução, a vontade e a esperança de mudança. É necessário perceber que o conflito provém de um choque de interesses e, como explica Mário Reis Marques, os conflitos não são de todo patológicos[iii], uma vez que servem de palco para a elaboração do tecido social. Sendo assim, embora a revolução se caracterize por uma certa precariedade de princípios jurídicos, ela é a propulsora para que novos valores constitucionais possam emergir; tendo em vista a definição de valores como “uma expressão de dimensões socioculturais pré-constitucionais ou inalienáveis da nova ordem jurídica quando esta pretende ser uma ordem de ruptura com um status quo anterior”[iv].

É no contexto inglês vigente no século XVII, diante do cenário de instabilidade política, que encontramos o “direito de resistência” e o “direito de revolução” como expressões que davam sentido ao “corpo do povo”, como afirma Gomes Canotilho[v]. Surge, então, a partir de Locke, um conceito de poder constituinte embrionário, uma vez que o autor distingue o poder constituinte do povo como modo de alcançar uma nova forma de governo, do poder ordinário do governo e do poder legislativo, como forma de criação de leis.

Apesar de nas sociedades primitivas as relações sociais de poder se basearem na força, o cenário não é significantemente distinto quando falamos do Estado Westfaliano, uma vez que ele legitimava o “direito de guerra”. Somente a partir da Carta das Nações Unidas o “direito de guerra” foi efetivamente extinto, com exceção de situações de defesa[vi]. A Carta das Nações Unidas apresenta-se, no plano jurídico internacional, como um instrumentos de resolução pacífica de conflitos.

Portanto, a função pacificadora e a função de garantia de liberdades individuais inerentes ao direito complementam-se, visto que o direito substituiu o “fazer justiça pelas próprias mãos”, ou seja, substitui o binômio ofensa-vingança pelo binômio delito-pena[vii], instituindo princípios de resolução pacífica de conflitos. Além disso, o direito procura garantir a cada indivíduo a sua esfera de atuação, desde que a mesma não seja conflitante com o tecido social. “No conflito entre o fraco e o forte, a liberdade oprime e o direito liberta”[viii], ou seja, o direito pode ser considerado o instrumento primordial de liberdade no que condiz com o momento revolucionário, afinal, diante das desproporcionalidades exercidas por cada Estado ou pelos indivíduos que participam de uma revolução, o direito, pautado no ideal de justiça e igualdade, é o aparato que valoriza as diferenças e garante a igualdade, visto que “Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”[ix].

Texto produzido com os contributos de:

Maria Eduarda de Toledo Chiarelli (Aluno n.º 2017124644)

 

[i] António CASTANHEIRA NEVES, «A revolução e o direito: a situação de crise e o sentido do direito no actual processo revolucionário», Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1976, p. 23.

[ii] Hannah ARENDT apud CASTANHEIRA NEVES, O direito e a revolução… ob. cit., p. 24.

[iii] Mário REIS MARQUES, Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2007, p. 15.

[iv] Suzana TAVARES DA SILVA, Direito Constitucional I, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra 2016, p. 93.

[v] José Joaquim GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 2003, pp.72.

[vi] Francisco FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Internacional Público, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 47.

[vii] Mário REIS MARQUES, Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2007, p. 86.

[viii] Henri DOMINIQUE LACORDAIRE apud Mário REIS MARQUES, Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2007, p. 88.

[ix] Boaventura DE SOUSA SANTOS, Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003, p. 56.

 

III.b  Revolução e direito

O conceito de revolução, entendido como mudança rápida e profunda da ordem estabelecida, coaduna-se com a noção de direito – suscetível às mudanças histórico-sociais – caracterizada por uma contínua renovação. No âmbito do Direito Constitucional, este atributo adquire uma relevância ainda maior, na medida em que o constitucionalismo abrange não só aos momentos de vigência constitucional, mas também aos seus predecessores: os momentos constituintes e os iniciáticos e pioneiros momentos pré-constitucionais.

Ora, parece-nos que a transição de um momento pré-constitucional para um momento constituinte se assume, hoje, como prioridade para os independentistas catalães, importando esclarecer a sua legitimidade para instituir uma nova ordem constitucional. Para o efeito, serão analisados os principais elementos e protagonistas da atual ‘questão catalã’, atendendo sempre à já mencionada dialética existente entre os conceitos de direito e de revolução. Estamos diante de uma mera deriva inconstitucional ou, naqueloutro sentido, será o processo de independência em curso o legítimo fundamento de um novo momento e poder constituinte?

Cingindo-nos aos principais argumentos de cada uma das partes em confronto, verificamos que, à parte dos basilares, reiterados e bilateralmente discutíveis argumentos históricos, culturais e económicos, o núcleo fundamental da discussão se centra, actualmente, na dicotomia do momento presente: um embate entre aquele que, na ótica dos membros da Generalitat, constitui já um momento pré-constitucional e a defesa acirrada, por parte do Estado espanhol (Governo, Senado, Coroa, Tribunal Constitucional, forças de segurança, inter alia) da vigência constitucional da Constituição Espanhola de 1978.

Por um lado, os separatistas sustentam a sua atuação nos sucessivos mandatos que o povo catalão lhes tem conferido nas urnas, invocando continuamente o caráter soberano e, portanto, vinculativo dos resultados eleitorais. Enquanto genuína expressão da vontade popular, os resultados das eleições autonómicas de 2015 e do referendo à autodeterminação realizado a 1 de Outubro de 2017 sobrepõem-se a quaisquer disposições administrativas, legais ou até constitucionais. Para além desta concepção do escrutínio eleitoral como autêntico momento pré-constituinte, os partidários da independência apontam ainda o caráter democrático de todo o processo e a vinculação da Espanha as inúmeras convenções internacionais que salvaguardam o direito dos povos à autodeterminação, entre as quais se destaca a Carta das Nações Unidas (art.1.º/2).

Por sua vez, o Estado Espanhol, primordialmente através do Governo e do Tribunal Constitucional, não hesita em classificar todo o processo como inconstitucional, ‘alheio às regras do jogo’, nada mais que um golpe de estado que atenta contra a integridade territorial do país. Reportando-se continuamente à Constituição Espanhola de 1978 (art.2.º), a reação das autoridades centrais atingiu o seu expoente máximo, não só com a discutível mobilização das forças de segurança junto das urnas, no dia 1 de Outubro, mas também, e sobretudo, com a inédita aplicação do artigo 155.º da Constituição Espanhola. A suspensão da autonomia catalã – consagrada no Estatuto de autonomia da Catalunha desde 1979 – fez aumentar o sentimento de coerência dos que apontam traços franquistas ao executivo de Mariano Rajoy, reflectidos também na destituição de vários membros do executivo regional. Acresce que a prisão de uma boa parte destes dirigentes, decretada pelo tribunais, que levou os restantes ao exílio em Bruxelas – entre os quais o agora destituído Presidente da Catalunha, Carles Puigdemont – também contribui para a imagem negativa do papel do Estado espanhol no seu conjunto institucional. Apenas a ordem constitucional dominante determinará, pois, o estatuto histórico dos protagonistas: traidores à pátria ou heróis da independência. A crescente tensão favorece os catalanistas, acentuando a ideia de que o poder constituinte, expresso pelo povo em momentos de evidente ruptura, se deve sobrepor ao poder constituído, incapaz de reverter as dinâmicas sociais senão pela força.

Destarte, no horizonte temporal ditado pela aplicação do artigo155.°, as eleições legislativas regionais antecipadas para 21 de Dezembro de 2017 afiguram-se como o teste definitivo à real vontade dos catalães. Verificando-se nova vitória independentista, esta teria um valor reforçado, por se tratar da reafirmação da vontade popular através de um ato eleitoral imposto e supervisionado pelo Estado Espanhol. Fracassado o objetivo de repor a ordem constitucional, Madrid veria reduzida a legitimidade para invocar inconstitucionalidades.

Conclui-se, pois, que somente o resultado do escrutínio previsto para 21 de dezembro de 2017 determinará os sempre imprevisíveis passos a seguir. Até lá, quaisquer referências a um eventual procedimento constituinte são meras especulações, contanto que a predileção catalã por referendos deixe antever uma possível Assembleia Constituinte não soberana.

Texto produzido com os contributos de:

José Edgar Alheia Cabreira (Aluno n.º 2017261021)

 

Referências bibliográficas

  • GOMES CANOTILHO, J.J, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pp 57-74.
  • MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis, ª ed., Almedina, Coimbra, 2017.
  • TAVARES DA SILVA, Suzana, Direito Constitucional I. Lições actualizadas e adaptadas às necessidades formativas do Espaço Europeu de Ensino Superior. Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016, pp 17-31.

 

Documentos consultados

  • BOLETÍN OFICIAL DEL ESTADO. ECLI:ES:TC:2017:114

Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es/docs/BOE/BOE-A-2017-12206.pdf > Acesso em: 7 de novembro de 2017

  • Estatut de Autonomia de 2006. Ratificado por referendo a 18 de junho de 2006

Disponível em:<http://web.gencat.cat/es/generalitat/estatut/estatut2006/ > Acesso em: 6 de novembro de 2017

  • DIARI OFICIAL DE LA GENERALITAT DE CATALUNYA. LEY 19/2017, de 6 de septiembre, del referèndum de autodeterminación

Disponível em:.<http://portaldogc.gencat.cat/utilsEADOP/PDF/7449A/1633376.pdf > Acesso em: 7 de novembro de 2017

  • Constitución Española de 1978. Ratificada por referendo a 6 de dezembro de 1978

Disponível em:<http://www.congreso.es/docu/constituciones/1978/1978_cd.pdf> Acesso em: 6 de novembro de 2017.

  • GUINDAL, Carlota (LA VANGUARDÍA). Los cuatro delitos belgas que deberá analizar el juez para la entrega de Puigdemont

Disponível em: http://www.lavanguardia.com/politica/20171108/432708700895/entrega-puigdemont-espana-delitos-codigo-penal-belga-euroorden.html Acesso em: 8 de novembro de 2017

  • REDACCIÓN, LA VANGUARDIA. Miles de personas piden la liberación de presos en Sant Jaume |

Disponível em: <http://www.lavanguardia.com/politica/20171108/432717480259/miles-de-personas-libertad-consellers-barcelona-cataluna.html> Acesso em: 8 de novembro de 2017

  • MARTÍNEZ-FORNÉS, Almudena (ABC ESPAÑA). El Rey: «En Cataluña ha habido un inaceptable intento de secesión»

Disponível em: <http://www.abc.es/espana/casa-real/abci-cataluna-habido-inaceptable-intento-secesion-201710202037_noticia.html> Acesso em: 8 de novembro de 2017

  • ABC ESPAÑA. Puigdemont reprocha a la UE que apoye a Rajoy y pregunta si aceptará los resultados del 21D.

Disponível em: <http://www.abc.es/espana/abci-puigdemont-reprocha-apoye-rajoy-y-pregunta-si-aceptara-resultados 201711072011_noticia.html?#ns_campaign=mod-outbrain&ns_mchannel=abc.es&ns_source=organico&ns_linkname=desktop-tablet&ns_fee=AR23_1fila> Acesso em: 8 de novembro de 2017

 

IV – O artigo 155 da Constituição Espanhola

Espanha, à semelhança de Portugal, é um país dotado de uma constituição escrita e rígida, que está em vigor desde 1978 (Constituição de 1978 na sua versão original) e que é consequência de um processo histórico (ver supra) denominado Transição Espanhola[i].

Texto actual do artigo 155[ii]:

  1. Si una Comunidad Autónoma no cumpliere las obligaciones que la Constitución u otras leyes le impongan, o actuare de forma que atente gravemente al interés general de España, el Gobierno, previo requerimiento al Presidente de la Comunidad Autónoma y, en el caso de no ser atendido, con la aprobación por mayoría absoluta del Senado, podrá adoptar las medidas necesarias para obligar a aquélla al cumplimiento forzoso de dichas obligaciones o para la protección del mencionado interés general.
  2. Para la ejecución de las medidas previstas en el apartado anterior, el Gobierno podrá dar instrucciones a todas las autoridades de las Comunidades Autónomas.

Conteúdo e sentido do artigo:

O artigo em análise prevê um mecanismo de controlo da atividade das Comunidades Autónomas[iii], de caracter excepcional e extremo, aplicável em situações igualmente excepcionais e extremas, como o incumprimento de obrigações impostas pela Constituição, por leis ou o cumprimento das mesmas de forma a atentar gravemente contra o interesse de Espanha.

O conteúdo deste artigo constitucional está baseado no artigo 37 da Lei Fundamental de Bonn[iv] e estabelece como pressupostos para o respectivo accionamento, a existência de um facto que atente de forma grave contra o interesse de Espanha, um requerimento prévio enviado ao Presidente da Comunidade Autónoma e, por último, a necessidade de que as medidas sejam aprovados por maioria absoluta[v] do Senado.

Deste modo, o governo pode impor-se e intervir no autogoverno regional quando uma comunidade autónoma não cumpre as suas obrigações[vi].

Não existiam precedentes da aplicação do artigo em análise nem outros semelhantes até à Declaração de Independência da Catalunha[vii].

No seguimento da aplicação do artigo 155 da CE, o governo espanhol destituiu o presidente regional e o seu gabinete e convocou novas eleições, passando assim a existir controlo do governo central sobre o sistema público regional até restituição da normalidade.

Texto produzido com os contributos de:

Sara Marina Tomé Fernandes (Aluna N.º 2017275405)

 

Referências bibliográficas:

GARCÍA MUÑOZ, Óscar, La constitución española en lectura fácil, Centro Español de Documentación sobre Discapacidad, Madrid, 2015.

GONZÁLEZ HERNÁNDEZ, Esther, «El artículo 155 CE y la LO 15/2015, de 17 de octubre de reforma de la LOTC: ¿ineludible reciprocidad o círculo perverso?», Teoria y Realidad Constitucional, vol 37, UNED, Madrid, pp. 529-557. 

MUÑOZ ARNAU, Juan Andrés, Algunas cuestiones sobre el desarrollo del constitución española de 1978, Dykinson S.L., Madrid, 2013.

http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/sinopsis/sinopsis.jsp?art=155&tipo=2

 

[i] Que converteu o regime franquista numa monarquia constitucional.

[ii] O artigo 155 localiza-se no Título VIII “De la organización territorial del estado” no Capítulo Terceiro “De las comunidades autónomas”. Espanha está organizada em territórios que contém as suas próprias instituições de governo. As comunidades autónomas correspondem a uma forma de autogoverno regional (artigo 137CE).

[iii] Sobre as formas gerais de controlo das actividades das comunidades autónomas v. artigo 153C.

[iv] Lei fundamental da República Federal da Alemanha.

[v] A maioria absoluta exige a aprovação por metade dos membros do Senado em efectividade de funções mais um.

[vi] Exemplo: O governo pode obrigar as comunidades autónomas a cumprir com as leis ou pode impedir que as comunidades autónomas actuem contra os interesses de todos os cidadãos.

[vii] A questão catalã: O governo catalão anunciou um referendo, que seria realizado em Novembro de 2014, onde seria abordada a questão da independência catalã. O Tribunal Constitucional Espanhol declarou-o inconstitucional após ser questionado pelo governo central. O mesmo acabaria, contudo, por se realizar em 9 de Novembro de 2014 como consulta não vinculativa.

Em Novembro de 2015, com a eleição do novo governo catalão, foi aprovado o inicio do processo de independência. No ano seguinte, o novo presidente, Carles Puigdemont, anunciou um referendo vinculativo sobre a independência. Apesar de ser considerado ilegal pelo governo espanhol e pelo Tribunal Constitucional, o referendo  realizou-se em 1 de Outubro de 2017.

Com base nesse resultado, em 27 de Outubro de 2017, o Parlamento da Catalunha aprovou uma resolução que instituiu a República Catalã Independente. O mesmo documento foi então votado e aprovado mesmo não tendo a votação valor legal.

Posteriormente, o primeiro-ministro Espanhol, Mariano Rajoy, anunciou a aprovação pelo Senado, ao abrigo do disposto no artigo 155 da constituição espanhola, da medida que destituía o presidente catalão Carles Puidemont e o seu gabinete, convocando novas eleições regionais para o dia 21 de Dezembro de 2017.

 

Documentos jurídicos relevantes do processo da Catalunha

05.04.2018 – Decisão do Tribunal Alemão do Land de Schleswig-Holstein sobre a extradição de Puigdemont

21.03.2018 – Decisão do Tribunal Supremo de Espanha que acusa os dirigentes políticos catalães de rebelião e sumaria o processo.

27.01.2018 – Decisão do TC pela qual se suspende a “resolución del Presidente del Parlamento de Cataluña por la que se propone la investidura de don Carles Puigdemont i Casamajó como candidato a Presidente del Gobierno de la Generalitat de Cataluña, publicada en el “Boletín Oficial del Parlamento de Cataluña”, núm. 3, de 23 de enero de 2018, y la resolución del Presidente del Parlamento de Cataluña de fecha de 25 de enero de 2018, por la que se convoca sesión plenaria el 30 de enero de 2018, a las 15:00 horas”.

16.11.2017 – Sentença do Pleno do TC que declara a inconstitucionalidade e a nulidade da Lei do Parlamento da Catalunha n.º 20/2017, de 8 de Setembro,
denominada «de transitoriedad jurídica y fundacional de la República»,
que pretende «dar forma jurídica, de forma transitoria, a los elementos
constitutivos básicos del nuevo estado» resultante da declaração unilateral
de independência pelo Parlamento de Catalunha

3.11.2017 – Decisão do Juzgado central de instruccion de Madrid, que ordenou o mandado de detenção europeu para Carles Puigdemon;

3.11.2017 – Decisão do TC que declara a inconstitucionalidade e a nulidade (i) da lei complementar à lei do referendo, do (ii) decreto que o convoca e (iii) da Resolução do Parlamento da Catalunha que nomeara os membros do colégio eleitoral;

3.11.2017 – Decisão do TC que não admite o recurso apresentado pela Generalitat contra as medidas do 155 da Constituição antes da sua aprovação pelo Senado;

2.11.2017 – Decisão do Juzgado central de instruccion de Madrid, que ordenou a prisão preventiva de diversos membros do Governo da Catalunha;

27.10.2017 – Decisão do Senado que aprova as medidas requeridas pelo Governo ao abrigo do artigo 155 da Constituição Espanhola;

17.10.2017 – Decisão do TC que declara a inconstitucionalidade e a nulidade da Lei do Referendo (Ley 19/2017);

10.10.2017 – Declaração de independência da Catalunha

5.10.2017 – Decisão do TC que admite o recurso de amparo do Partido Socialista da Cataluña e suspende a convocatória do pleno do Parlamento da Cataluña previsto para valorar os resultados do referendo;

19.09.2017 – Decisão sobre a nulidade dos actos que permitiram a aprovação da Lei do Referendo (Ley 19/2017);

13.09.2017 – Decisão do TC que fixa o prazo de 48h para que os membros da comissão eleitoral do referendo informem o tribunal das acções adoptadas para suspender aquele acto

12.09.2017 – Decisão do TC que suspende e admite o recurso de inconstitucionalidade da lei de transição jurídica e fundacional da República da Catalunha (Ley 20/2017);

8.9.2017 – Ley 20/2017, de 8 de septiembre, de transitoriedad jurídica y fundacional de la República;

7.9.2017 – Decisão do TC que admite (i) o recurso de inconstitucionalidade contra a Lei do referendo (Ley 19/2017), (ii)  a impugnação da Resolução 807/XI do Parlamento da Cataluña que designa os membros da comissão eleitoral e (iii) o decreto da Generalitat que se aprova as normas para a celebração do referendo;

7.9.2017 – Parecer do Conselho de Estado sobre a interposição do recurso de inconstitucionalidade da Lei do Referendo  (Ley 19/2017);

6.9.2017 – Ley de Cataluña 19/2017, de 6 de Setembro, denominada “del referéndum de autodeterminación”

16.08.2017 – O TC não admite o recurso apresentado pela Generalitat contra a suspensão cautelar da reforma do Regulamento do Parlamento da Catalunha

31.07.2017 – Decisão do TC que admite o recurso de inconstitucionalidade contra o artigo 135.º da reforma do Regulamento do Parlamento da Catalunha

27.07.2017 – Reforma parcial do Regulamento do Parlamento da Catalunha aprovado em 27.07.2017

2.12.2015 – Decisão que declara a inconstitucionalidade da Resolução 1/XI do Parlamento da Catalunha

9.11.2015 – Resolução 1/XI do Parlamento da Catalunha.

 

Documentos jurídicos para compreender o processo da Catalunha