Experiências Constituintes

 

A experiência constituinte no Brasil

Analisaremos, de forma breve, a história da independência brasileira, o contexto das diferentes constituições e respectivos processos constituintes, a Constituição vigente e as suas revisões/emendas.

1. Breve referência à história da independência

“Independência ou morte!” foi o suposto eco de bravura de D. Pedro I no dia 7 de setembro de 1822. Teoricamente, a independência brasileira significaria a liberdade perante Portugal, contudo, há unanimidade entre os historiadores de que a independência não foi de facto uma liberdade, ou sequer um acto de coragem fundamentado na vontade do povo. Importa lembrar que, por um lado, embora se tenha “libertado” de Portugal, o Brasil tornou-se dependente economicamente da Inglaterra [i].
A colônia brasileira assistiu, em 1808, D. João VI e sua família fugirem para terras brasileiras, uma vez que Portugal se inseria em um cenário revolucionário causado pelas tropas napoleônicas. Todavia, sentindo o abandono político e econômico ocasionado pela fuga do Rei, os mais diversos estratos sociais portugueses iniciaram a Revolução do Porto em 1820 [ii], a qual se tornou um movimento extremamente liberal para Portugal, mas conservador para o Brasil, visto que os portugueses reivindicavam o retorno do status do Brasil como colônia (reestabelecimento do Pacto Colonial) e o retorno do Rei a Portugal.
Dessa forma, D. João VI se viu pressionado a retornar ao país de origem, deixando, portanto, seu filho D. Pedro I como príncipe regente do Brasil. O conflito continuou quando os portugueses exigiram o regresso também de D. Pedro I a Portugal, o qual respondeu com o famoso “Dia do Fico”, em 09 de janeiro de 1822. Entretanto, a pressão exercida por Portugal perdurou, até que no dia 07 de setembro do mesmo ano, D. Pedro declarou a independência diante das ameaças realizada pelos portugueses.
Em suma, o movimento de independência brasileiro não passou por um momento revolucionário, o qual teria na Constituição formal o reflexo da Constituição material vigente, mas consistiu na imposição da vontade do monarca que, após outorgar a primeira Constituição, utilizou dela para criar poderes absolutistas para si próprio (quarto poder: moderador), com o apoio da elite conservadora brasileira. Sendo assim, pode-se afirmar que não houve um processo representativo de facto, mas a outorga de valores que visavam beneficiar somente uma minoria privilegiada socialmente.

I. As Constituições e os Processos Constituintes

Como visto anteriormente, a primeira Constituição de 1824 foi outorgada pelo Imperador Dom Pedro I no contexto de instabilidade política tanto na colônia (Brasil), quanto na metrópole (Portugal). Dessa forma, ao Imperador era concedido o poder moderador [iii], no qual, segundo o art. 99 “A Pessoa do Imperador é inviolável e sagrada; ele não está sujeito a responsabilidade alguma”. Sendo assim, este poder atribuía ao Imperador o posto de chefe supremo do Estado brasileiro, uma vez que o poder moderador controlava todos os outros (legislativo, judicial e executivo).
Em seguida, a Constituição de 1891 foi promulgada pelo processo representativo diante do cenário no qual o Imperador D. Pedro II viu sua credibilidade ser desorientada, após assistir o decaimento do seu tripé de apoio, formado pela aristocracia agrária, Exército e Igreja Católica. Da aristocracia perdeu o apoio após a abolição da escravidão em 1888; dos militares após a Guerra do Paraguai e o sentimento de salvação nacional por parte dos guerreiros e da Igreja a partir da aprovação do Beneplácito e Padroado Régio. Desta forma, os militares decidiram tomar o poder e instaurar a República, processo que também não contou com a representação do povo, sendo apenas realizado conforme os moldes da elite privilegiada brasileira.
Já a Constituição de 1934, promulgada segundo o processo constituinte representativo com assembleia soberana, faz parte da Segunda República de Vargas pós Revolução de 1930, conflito que findou a República Velha. Depois da Revolução Constitucionalista de 1932, a Assembleia Constituinte redigiu uma nova constituição inspirada na Constituição alemã de Weimar e na Constituição Republicana espanhola de 1931. Todavia, esta Constituição teve limitada durabilidade, embora significasse um progresso no que tange a questão de direitos humanos, afinal, concedia leis trabalhistas, ampliava o direito de voto ao voto feminino, instituía o voto secreto, entre outros.
Todavia, o cunho progressista de Vargas decaiu quando o mesmo outorgou a Constituição de 1937, também conhecida por “Constituição Polaca”, a qual dava início ao Estado Novo no Brasil. Este período consistiu no cerceamento das liberdades individuais, na concentração de poderes nas mãos do Executivo, a dissolução de partidos políticos e símbolos dos Estados, supervalorizando a Federação, entre outros.
Sendo assim, em consequência dos desastres da Segunda Guerra Mundial [iv], a queda de Vargas resultou na redemocratização do país [v], o que garantiu a formação da Constituição de 1946, a qual foi promulgada através de processo constituinte representativo com assembleia soberana. Esta Constituição deu fim a pena de morte e a censura, restaurando os direitos e garantias individuais, representando uma gama de ideais liberais, como: direito a greve e livre associação sindical, pluralidade partidária etc.
Entretanto, a instauração de um regime militar levou ao país outro retrocesso, visto que fez o povo ter suas liberdades censuradas [vi]. Compôs-se de um governo autoritário que visava combater inimigos internos considerados subversivos (qualquer um que fosse contrário ao sistema) através da violência (torturas, mortes, entre outros tipos). Nasceu na Constituição semi-outorgada de 1967, e se “aperfeiçoou” na Emenda Constitucional de 69 (há discordância se pode ser chamada de “Constituição de 69”), quando os actos institucionais foram institucionalizados, tendo como maior exemplo o AI-5. Todavia, ainda não há unanimidade sobre a dualidade da discussão acerca do termo “outorgada” ou “semi-outorgada”, afinal, a Constituição de 1967 foi elaborada pelo Executivo e submetida ao Congresso Nacional para aprovação, contudo, este órgão era composto por membros designados pelo próprio Presidente.
O resultado deste período foi a atual promulgação por assembleia soberana da Constituição de 1988, a qual foi regulamentada inicialmente pelo regulamento interno da Assembleia Nacional Constituinte. Esta Constituição, portanto, amplia a gama de direitos e garantias fundamentais que foram extintos pelo período militar, desde a liberdade de expressão ao direito de greves, à pluralidade de partidos e, ainda, ao direito de voto por parte do povo.

II. A Constituição de 1988 e suas revisões

A Constituição brasileira de 1988 detém mecanismos de revisão e emendas constitucionais, sendo integrada nos moldes de uma constituição progressista. Não constitui, portanto, um corpo de todo rígido, mas também não é tão flexível ao ponto de mudar conforme as mudanças sociais, visto que há determinados requisitos necessários a serem preenchidos para sua revisão.
Sendo assim, a Constituição Brasileira de 1988 prevê, no artigo terceiro dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o seguinte: “A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”. Ou seja, prevê a possibilidade de apenas uma revisão constitucional, desde que respeite os limites temporais e procedimentais. Cabe ressaltar, nestas circunstâncias, as seis emendas constitucionais já realizadas: 1) Emenda de revisão constitucional de 01 de março de 1994, a qual acrescenta os arts. 71°, 72° e 73° ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; 2) Segunda emenda de revisão constitucional de 07 de junho de 1994, que altera o caput do art. 50° e seu § 2º, da Constituição Federal; 3) Terceira de 07 de junho de 1994, que altera a alínea “c” do inciso I, a alínea “b” do inciso II, o § 1º e o inciso II do § 4º do art. 12° da Constituição Federal; 4) Quarta de 07 de junho de 1994, que altera o § 9º do art. 14° da Constituição Federal; 5) Quinta de 07 de junho de 1994, a qual altera o art. 82° da Constituição Federal e 6) Por fim, a sexta de 07 de junho de 1994, a qual acrescenta o § 4º ao art. 55° da Constituição Federal.
Acresce que, no que tange o âmbito constitucional, embora a Constituição não possa mais ser revista por lei, visto que só era prevista uma única revisão (a qual foi realizada em 1994), vale lembrar que o art. 60° da CF permite a realização de emendas constitucionais, desde que respeitem os limites estipulados pelo mesmo. Neste sentido, a única forma de atualmente revisar a CF é através de emendas constitucionais, as quais podem ser realizadas mediante o cumprimento dos cinco parágrafos.
Conclui-se, portanto, a partir dos conceitos de constituição material e formal, que o constitucionalismo brasileiro não representou, na íntegra, o reflexo da constituição material, visto que até mesmo os momentos de redemocratizações foram realizados pela camada mais privilegiada da sociedade. Ou seja, as minorias sociais (no que consiste o termo sociologicamente dito), durante toda a história receberam imposições no que condiz ao âmbito jurídico, facto que justifica a maioria de movimentos sociais existentes de reivindicação de representatividade, como o movimento feminista brasileiro.

[i] Laurentino GOMES, 1808, Porto Editora, Porto, 2015, pp. 33 e 34.

[ii] Carta dirigida a ElRei pela Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, estabelecida no Porto, 1820. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242804.

[iii] AFONSO DA SILVA, José. O Constitucionalismo brasileiro – Evolução Institucional. 2011, Editora Malheiros, pág. 76.

[iv] SILVA, Tatiana Mareto. O constitucionalismo pós segunda guerra mundial e o crescente ativismo judicial no brasil: uma análise da evolução do papel do poder judiciário para a efetivação das constituições substancialistas. Disponível em:  https://www.conpedi.org.br/publicacoes/y0ii48h0/p9j98k25/8LFI2r64CVD8DSqU.pdf. Acesso em: 05/11/2017.

[v] AFONSO DA SILVA, José. O Constitucionalismo brasileiro – evolução institucional. 2011, Editora Malheiros, págs 83 e 84.

[vi] OLIVERI, Antônio Carlos. Censura: o regime militar e a liberdade de expressão. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-brasil/censura-o-regime-militar-e-a-liberdade-de-expressao.htm. Acesso em: 05/11/2017.

Texto produzido com os contributos de:

Maria Eduarda de Toledo Chiarelli
Aluna N.° 2017124644
e
Liliana Cláudia Ferreira Machado
Aluna N.º 2017260563

 

experiência constituinte em Moçambique

1. A independência

Os portugueses chegaram às terras que hoje compõe o território de Moçambique em finais do século XV.

No século XX, surgiram nas colónias portuguesas movimentos de libertação, aos quais Portugal resistiu, arrastando o país para uma Guerra Colonial (Conhecida como Guerra de Libertação, pelos povos africanos). Em Moçambique, a guerra começou em 1964, opondo as forças militares portuguesas à FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique)[1]. Este conflito armado, que se arrastou por dez anos, fez mais de sessenta mil mortos, entre portugueses e moçambicanos.

Com o fim do regime ditatorial em Portugal, na sequência da Revolução de 25 de abril de 1974, a visão da metrópole face às colónias modificou-se e iniciou-se um período de conversações entre Portugal e os movimentos de libertação, que resultou, no caso de Moçambique, em Setembro desse mesmo ano, no acordo de Lusaka, no qual Portugal reconhecia o direito à independência deste país.

Assim, Moçambique acabou por declarar a independência a 25 de Junho de 1975.

2. As constituições

A Constituição da República Popular da Moçambique (de 1975) entrou em vigor no mesmo dia em que Moçambique se tornou independente e sofreu depois diversas alterações, primeiro em 1976 e 1977, alterações aprovadas, respectivamente, na 8.ª Reunião e na 2.ª Sessão do Comité Central da FRELIMO, e, posteriormente, quatro alterações aprovadas pela Assembleia Popular, através dos seguintes actos: Lei n.º 11/78 de 15 de Agosto; Resolução n.º 11/82, de 1 de Setembro; Lei n.º 1/84, de 27 de Abril; e Lei n.º 4/86, de 25 de Julho.

Após a independência, o país passou por uma guerra civil, que levou a que, ainda no decorrer da mesma, fosse aprovada uma nova constituição, a Constituição da República de Moçambique (de 1990). Em 1991, para Jorge Miranda «as circunstâncias de guerra (…) leva(va)m a considerar esta Lei Fundamental, com alguma prudência, como provisória»[2]. Esta Constituição foi objecto de revisões constitucionais em 1993, 1996 e 1998.

De facto, em 2004, já após o fim da guerra civil, foi aprovada uma nova constituição, a Constituição da República de Moçambique (de 2004), que entrou em vigor no dia 21 de Janeiro de 2005 e que ainda hoje se encontra em vigor, com a alteração introduzida pela Lei n.º 26/2007, de 16 de Novembro.

3. Procedimentos constituintes

A primeira constituição moçambicana, como já se disse, entrou em vigor aquando da independência do país e foi um “produto” do Comité Central FRELIMO, que a elaborou e, de modo autoritário, a impôs ao povo moçambicano.

Em 1978, o poder constituinte passou para a Assembleia Popular. Por este motivo, a Constituição de 1990 foi já elaborada por este órgão. No entanto, e apesar de a Assembleia Popular ter poder para elaborar e aprovar a constituição, este processo constituinte não foi verdadeiramente representativo, pois os seus membros não foram eleitos pelo povo, eles eram representantes do partido único da altura, que correspondia à FRELIMO.

Em 2004, o processo constituinte foi conduzido pela Assembleia da República (denominação adoptada pela Assembleia Nacional Popular desde 1994), podendo já qualificar-se como representativo e soberano, pois a Assembleia tinha poder para elaborar e aprovar a constituição.

[1] Fundada em 1962, a FRELIMO era o resultado da união de três movimentos independentistas: a UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), a MANU (Mozambique African National Union) e a UNAMI (União Nacional de Moçambique Independente).

[2] Cf. MIRANDA, Jorge, As Novas Constituições – Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Moçambique, Lisboa, 1991, p. 9.

Texto produzido com os contributos de:

Xavier Silva Oliveira

Aluno N.º 2017253376

 

Um “experiência constituinte” sui generis: a Região Administrativa Especial de Macau

Macau é, desde 20 de Dezembro de 1999, uma região chinesa de administração especial, sendo essa a data da descolonização oficial portuguesa na região (vigente desde meados de 1557). Macau passou então a ser um território administrado pela China, embora possuindo um grau de soberania considerável face àquele país, segundo o seu estatuto de Região Administrativa Especial (RAEM) aprovado pela respectiva lei básica.

Em 1966, ocorreu em Macau o famoso Motim 1-2-3, provado por chineses pró-comunistas, seguidores dos ideais de Mao Tsé-Tung. Esse motim teve repercussões na moral dos portugueses administradores de Macau, que renunciaram à ocupação portuguesa da região, e, dessa forma, delinearam o fim do colonialismo macaense. Contudo, só em 1999, com a ‘Declaração Conjunta Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau’, é que a soberania da região foi outorgada à República Popular da China, sendo então igualmente definido o estatuto especial de Macau.

Sendo uma região autónoma chinesa, Macau possui a sua própria legislação superior: a já mencionada Lei Básica da Região Administrativa de Macau, que é “equiparável” a uma forma sui generis de ‘constituição macaense’. A Lei Básica tem como base a ‘Declaração Conjunta Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau’, a já existente ‘Lei Básica de Hong Kong’ (que é, juntamente com Macau, uma região administrativa especial chinesa) e o Artigo 31º da Constituição da República Popular Chinesa, que representa juridicamente o princípio político de “um país, dois sistemas”. A Lei Básica de Macau define princípios básicos da região e da sua população, e estrutura de forma regulamentar os poderes da RAEM. Foi aprovada e promulgada a 31 de março de 1993, e entrou em vigor a 20 de dezembro de 1999.

Assim, Macau rege-se essencialmente pela sua Lei Básica, embora, em conformidade com o disposto no artigo 31º da Constituição da República Popular da China, não deixe de ser apenas uma Região Especial do Estado Chinês. O que se torna especialmente visível se tivermos em conta que cabe ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional a interpretação da Lei Básica da RAEM.

De acordo com o disposto no artigo 144º da Lei Básica de Macau, as revisões àquele instrumentos normativo são realizadas exclusivamente pela Assembleia Nacional Popular e o poder de apresentar propostas de revisão pertence ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, ao Concelho de Estado e à Região Administrativa Especial de Macau.

A Lei Básica difere das Constituições no sentido em que, apesar de poder conter em si princípios e regras universais que vinculam o território sob o seu regime administrativo especial, ela não está, verdadeiramente, no topo da ‘pirâmide normativa’, pois o regime “um país, dois sistemas”, só assegura um grau muito significativo de autonomia, não admitindo soluções que possam representar uma violação do conteúdo essencial da Constituição Chinesa.

Assim, a Lei Básica está subordinada à Constituição da República Popular da China – ou seja, a Lei Básica não goza do estatuto de norma absoluta e suprema. No entanto, a circunstância de a Lei Básica das Regiões Administrativas Especiais conferir e proteger certas liberdades e direitos especiais, apesar da sua base legal ser a Constituição Chinesa, permite compreender que se trata, também, de uma “carta de direitos” que opera, a seu modo, e durante a sua vigência, com uma função contra-mioritária.

 

Textos consultados

LOK, Wai Kin – A Constituição e a Lei Básica são base constitucional da Região Administrativa Especial, Administração n.º 88, vol. XXIII, 2010-2.º, 383-395

 

Texto produzido com os contributos de:

Sofia Albuquerque Sousa Gonçalves

Aluna Nº 2017255460

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