Catalunha

A “questão catalã” ou a “independência da Catalunha”, como já foi cunhada pelos órgãos de comunicação social, é um assunto actual e que permite aos alunos de direito constitucional “testar” alguns conceitos operatórios apreendidos logos nas primeiras aulas: o que é uma Constituição? O que é o poder constituinte originário e derivado? Em que é que consiste a força normativa da Constituição? Como é que a Constituição protege a ordem jurídica vigente perante movimento de ruptura? O que são as transições e as mutações constitucionais? Como actua o constitucionalismo revolucionário? Quem é o sujeito da Constituição? Como se legitima o poder constituinte? Que limites podem ser hoje apontados ao poder constituinte originário? Os espaços de integração política e económica contribuem para modificar o sentido actual do poder constituinte originário e derivado?

Pedi aos meus alunos do 1.º ano de direito constitucional que fossem investigar a história da Catalunha, a história do constitucionalismo espanhol, o ambiente político, social e económico em que foi aprovada a Constituição Espanhola de 1978 e o seu procedimento constituinte, o que dizem os constitucionalistas espanhóis sobre o artigo 155.º da Constituição, qual o valor da “declaração unilateral de independência” votada pelo  Parlamento da Catalunha no dia 27 de Outubro de 2017 e qual o papel do Tribunal Constitucional Espanhol em todo este processo….

 

 

I – História da Catalunha e do processo independentista

A maior parte das cidades catalãs foi fundada no séc. I a.C. por Augusto, durante a romanização da Península Ibéria. É o caso, entre outras, de Gerunda [hoje Gerona], Ilerda [hoje Lérida] e Barcino [hoje, Barcelona][i]. Mais tarde, quando os visigodos se instalam na Península e fundam o Reino de Toledo (567 a 711), Barcelona seria a sua primeira capital durante o período de ocupação da Hispânia. A este propósito podemos notar que o sistema político dos Visigodos – a Res Publica Cristiana – se baseava num rei eleito pela aristocracia e pelo reconhecimento de direitos e deveres públicos regulados no Código Visigótico.

No século VIII (711), os muçulmanos invadiram a Península Ibérica, conquistando uma grande porção de território  e fundando o Emirado de Córdova, que mais tarde, em 929, daria origem ao Califado de Córdova, quando o emir Abd Al-Rahman se autoproclama califa. O avanço dos muçulmanos neste período permite-lhes ocupar cidades como Lérida, Gerona e Barcelona ainda entre 712 e 720. São, contudo, travados em Poitiers, em 732, pelas tropas de Carlos Magno e é o Império Carolíngio que impulsiona a reconquista dos territórios. A cidade de Barcelona é conquistada por Ludovico Pío (neto e sucessor de Carlos Magno) em 801.

É nesta fase que se estabelece a Marca Hispânica para designar o território que separa o domínio muçulmano do Império Carolíngio e é também entre os séculos IX e X que se erguem naquela zona diversos castelos e outras edificações muralhadas que hão-de posteriormente, segundo umas das teorias vigentes, dar origem ao nome de Catalunha [terra de castelos]. Estes territórios conquistados aos árabes pelo Império de Carlos Magno começam a ser povoados por condes indicados pelo Imperador. É assim com Guifré el Pilós primeiro Conde de Barcelona, Gerona, Cerdaña e Conflent, que é também o último nomeado directamente pelo Rei francês. Após a sua morte em 897, numa batalha com os muçulmanos, os seus filhos decidem repartir entre si o território e Guifré II, o primogénito, converte-se em Conde de Barcelona e Gerona, embora ainda com a aprovação e a protecção do Rei.

É em finais do século X, com Borrell II, à data conde de Barcelona, que surge a independência do Condado de Barcelona, fruto de um pacto então estabelecido com o califado de Córdova para garantir a paz no território. Entretanto, durante os séculos X e XI, o Califado de Córdova divide-se, em resultado de lutas internas, e os sucessivos condes de Barcelona tentam ampliar os seus territórios sem sucesso. A paz surge no contexto da união com o Reino de Aragão, quando em 1131 o conde Ramón Berenguer IV da Catalunha é prometido a Petronila, filha do rei de Aragão e, em 1164, Afonso II de Aragão, filho destes, unifica os territórios do Reino de Aragão e do Principado da Catalunha, sob a mesma dinastia (casa dos Condes de Barcelona), mantendo a Catalunha não apenas a sua autonomia (a Catalunha, neste período, tinha tradições, leis, instituições políticas e moeda próprias), como ainda uma certa hegemonia, por de ser o território mais rico.

Em 1283, Pedro III de Aragão (filho de Jaime I, que era neto de Afonso II e filho de Pedro II), intervindo em prol dos interesses de sua esposa, filha do rei da Sicília, conquista a ilha, que havia sido invadida pela casa real francesa, numa tentativa de alargar a sua influência no mar Mediterrâneo. O Papa Martinho IV excomunga o rei aragonês e entrega a Catalunha a Carlos de Valois, filho do rei Filipe III de França, que a invade, mas acaba por se retirar em 1284, derrotado por Afonso III (filho de Pedro III). A paz com França é selada através do casamento de Afonso III com Branca, filha de Carlos II de Anjou, um enlace que, no contexto do tratado de Anagni (1295) permite também levantar a excomunhão da Casa de Barcelona. São desta época as primeiras codificações de regras adoptadas pelas Cortes de Barcelona a que dão o nome de primeiras constituciones catalanas.

O reinado da casa de Aragão-Barcelona termina com a morte de Martín I em 1410. Abre-se um processo de sucessão que culmina com a indicação de Fernando I (Fernando de Antequera) nas deliberações de Caspe em 1412. Começa assim o reinado da Casa de Aragão e Trastâmara.

Em 1469, com o casamento dos reis católicos (Fernando de Aragão e Isabel de Castela), as Coroas de Aragão – incluindo a Catalunha – e Castela passam a estar unidas, apesar de os dois Reinos manterem as suas instituições políticas separadas a nível interno. Embora muitos apontem este momento como o início da unidade da Espanha, tal não sucede na prática, uma vez que os reinos continuam a funcionar de forma independente, com a única excepção para o Tribunal da Santa Inquisição, que passa a ser única instituição comum a ambos[ii]. As revoltas dentro da Catalunha (que têm grande tradição desde a época do domínio muçulmano)  são constantes ao longo do reinado da Casa de Aragão e Trastâmara, sendo a promulgação da Constituição Com per lo Senyor (1481), apenas um exemplo destes movimentos[iii].

Com a morte do rei católico Fernando II, sucede-lhe Carlos I na Coroa de Aragão, o filho de Joana a Louca, que é também Carlo V o Imperador do Sacro Império Romano Germânico. Os duzentos anos do reinado da Casa de Habsburgo, que não são isentos de problemas no Principado da Catalunha. As revoltas devem-se sobretudo à contestação de medidas implementadas por Felipe II (Felipe I de Catalunha e Aragão) nas áreas da educação e da tributação, o que leva o monarca nas Cortes de 1585, na tentativa de apaziguar os ânimos, a ordenar a publicação do sistema constitucional catalão e a aprovar o Redreç de la Generalitat, que institui as divuitenes como forma de controlar aspectos económicos daquele território. Nos reinados de Felipe III e Felipe IV (Felipe II e Felipe III de Catalunha e Aragão, respectivamente) a situação agrava-se com a tentativa de impor uma tributação mais elevada na Catalunha e com a constante reclamação de verbas para financiar a crise económica em Castela.

Em 1640, a Catalunha revolta-se contra a coroa espanhola. O mal-estar tem origem nas políticas do Conde-Duque de Olivares[iv], mas o episódio que despoleta Corpus de Sangre é a presença na Catalunha de militares castelhanos e milícias ao seu serviço no contexto do combate entre Espanha e França. É esta revolta na Catalunha e a presença de tropas espanholas nessa região que veio permitir que Portugal conseguisse levar a cabo a restauração da independência. Em 1652, Espanha põe fim à revolução catalã, mas o nacionalismo, para muitos, fica instalado na região.

Já mais tarde, durante a Guerra da Sucessão Espanhola (1679), a Catalunha apoiou a Casa de Habsburgo em vez da Casa de Bourbon e celebra até um tratado com Inglaterra para manter o apoio ao arquiduque Carlos.  Por este motivo, perto do final da guerra, já com a vitória quase garantida, as forças apoiantes da Casa de Bourbon cercaram Barcelona, resultando na morte de vinte mil pessoas. Com a vitória desta casa real, Felipe V não perdoa e impõe o Decreto de Nueva Planta, que retira a autonomia da Catalunha impõe o fecho do seu parlamento e a proibição do catalão para os funcionários do Estado.

No século XIX, com a recuperação económica da região, o sentimento nacionalista retorna à Catalunha, mas de forma ainda tímida, pois nas Cortes de Cádis os deputados catalães aceitam o articulado da Constituição de 1812 que faz referência a uma Nação espanhola una.

No século seguinte, toda a Espanha entra em crise, devido aos mais variados fatores, entre os quais o aumento demográfico e o surgimento de novas forças políticas. No caso da Catalunha essas forças políticas são a Lliga Regionalista, que agrupa uma parte da burguesia com aspirações autonómicas (a direita independentista), e, de outro lado, o movimento obreiro (UGT e CNT). Durante a ditadura de Primo de Rivera, uma parte mais radical do movimento catalão desagrega-se e funda a Acció Catalana ao mesmo tempo que o governo ditatorial retira poderes à Catalunha, dissolve a mancomunitat e proíbe os símbolos catalães.  Em 1931, é proclamada a Segunda República Espanhola e a Catalunha ganha novamente alguma autonomia, com a criação do seu governo regional (a Generalitat). É também neste período que as esquerdas se organizam e criam a Esquerra Republicana de Catalunya. Durante a Guerra Civil Espanhola, a Catalunha fundou a República Catalã e, assente no “poder duplo” (a rua controlada pelos anarquistas e as fronteiras e as instituições pela Generalitat), consegue fazer oposição ao regime franquista. Mas este acaba por vencer e, uma vez mais, todos os poderes autonómicos são retirados à Catalunha. Neste caso não se tratou apenas de uma revogação do poder de auto-administração e de organização política, Franco limitou também o acesso da Catalunha a diversos recursos escassos, como a energia, conseguindo desta forma controlar o próprio desenvolvimento económico naquele território. Com o fim da Guerra Civil, Franco instaura um novo regime político que perdurará até 1975.

Em 1975, Juan Carlos é aclamado rei de Espanha e o processo de democratização é iniciado. Na Constituição Espanhola de 1978 está consagrada a divisão da Espanha em Comunidades Autónomas, as quais podem adoptar uma língua oficial própria (além do castelhano), a fixar nos respectivos estatutos, e dotar-se de instituições políticas próprias, entre outros aspectos.

É importante lembrar que durante o período da Guerra Civil muitos independentistas optaram pelo exílio e é a partir daí que se reorganizam no novo ciclo político-constitucional. É nesta fase que surge a Comissão Coordenadora das Força Políticas da Catalunha, que agrupa força políticas tão diversas como a Front Nacional de Catalunya (movimento de direita), a Unió Democràtica (o centro-direita cristão) e o Moviment Socialista de Catalunya (social-democracia). Na preparação das eleições democráticas as força políticas voltam a reorganizar-se e o centro-direita, que inicialmente contava apenas com o partido Convergència Democràtica de Catalunya, dirigido por Jordi Pujol, alia-se aos democratas cristãos da Unió Democràtica, dando origem à coligação Convergencia i Unió. Os socialistas e sociais democratas também se reorganizam em conjunto com os republicanos no Reagrument Socialista i Democràtic de Catalunya.

No século XXI, o nacionalismo catalão aumenta. Em 2006, a Catalunha conseguiu ver a sua autonomia reforçada com a aprovação de um novo Estatuto (Estatuto de autonomía de Cataluña). Isso não foi suficiente para acalmar o ímpeto independentista e em 2014 realizou-se um referendo sobre a independência da Catalunha, o qual obteve 80% dos votos a favor de a Catalunha ser um Estado (independente ou não).

A crise agravou-se com os resultados das eleições de 2015, em que o Movimento Juntos pelo Sim, uma coligação que agrupa diversos partidos independentistas de todos os espectros ideológicos, alcança 39,6% dos votos e acaba por aliar-se à Catalunha Sim Se Pode (uma coligação de esquerdas, da qual faz parte o Podemos, formada em 2015, com base no ideário independentista), que obteve 8.9% dos votos, e à Candidatura de Unidade Popular (um partido político de esquerda e independentista, que assenta em assembleias populares), que obtivera 8,2 dos votos, para formar um pacto pela independência.

Segue-se um processo político complexo, com diversos diplomas e resoluções aprovados contra as normas da Constituição.

Texto produzido com os contributos de:

Xavier Silva Oliveira (Aluno n.º 2017253376)

 

Referências bibliográficas

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KAMEN, Henry, España y Cataluña: Historia de una Pasión, La Esfera de los Libros, Madrid, 2014.

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Outras fontes

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LIMA, António Saraiva – História da Catalunha. Relato de uma submissão indesejada [Em linha]. Comunidade Cultura e Arte, 2017. [Consultado a 10/11/2017]. Disponível em: http://bit.ly/2i12lL3

Coroa de Aragão [Em linha]. Wikipédia, 2017. [Consultado a 10/11/2017]. Disponível em: http://bit.ly/2i1Mg7H

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Estatuto de autonomía de Cataluña [Em linha]. Parlement de Catalunya, 2013. [Consultado a 10/11/2017]. Disponível em: http://bit.ly/2zwhrCe

LORENA, Sofia – 80% dos catalães que votam dizem “sim” à independência [Em linha]. PÚBLICO, 2014. [Consultado a 10/11/2017]. Disponível em: http://bit.ly/2zyMFGf

 

Notas

[i] David AGUSTI, Historia de Cataluña, Sílex Ediciones, 2014

[ii] Historia de España [Em linha]. La Moncloa. [Consultado a 10/11/2017]. Disponível em: http://bit.ly/2i1OlAG

[iii] PÉREZ DE LOS COBOS, «La primera revolución del campesinado español. Payeses de remensa», Anales de la Universidad de Murcia (Derecho), Vol. XXX Núm. 3-4, recurso on-line [http://revistas.um.es/analesumderecho/article/view/104681/99611].

[iv] Henry KAMEN, España y Cataluña: Historia de una Pasión, La Esfera de los Libros, Madrid, 2014.

 

II – A História do Constitucionalismo Espanhol

A primeira Constituição Espanhola, propriamente dita, é a Constituição de 1812, que marca o início do constitucionalismo espanhol, o que, como veremos, não retira interesse ao Estatuto de Baiona de 1808. Ao todo existiram sete textos constitucionais oficiais na história espanhola contando com a vigente Constituição de 1978: as quatro primeiras, de 1812, 1837, 1845 e 1869; e as outras três, de 1876, 1931, 1978. As sete constituições encontram-se divididas em dois grupos, porque entre a Constituição de 1869 e a Constituição de 1876 existiram outras experiências constituintes menos relevantes.

Em Espanha, à semelhança de todas as experiências constitucionais, as principais matérias que são objecto de normação pela lei fundamental são os direitos fundamentais, as garantias institucionais, os mandatos ao legislador e os princípios fundamentais do Estado. É com base nestes pressupostos que analisaremos brevemente cada uma das constituições espanholas. No entanto, daremos especial relevância à região recentemente autoproclamada independente de Espanha, a Catalunha, e, portanto, à Constituição Espanhola de 1978, que possui legislação determinante acerca do estatuto das Regiões ou Comunidades Autónomas Espanholas.

Em 1808, surge em Espanha uma base para o que seria o seu constitucionalismo nos séculos que se seguiriam: o Estatuto de Baiona. Uma carta outorgada por José Bonaparte e que, como o próprio nome faz prever, não nasceu livre de interesses. Foi uma forma de o seu irmão, Napoleão Bonaparte tentar acabar com o absolutismo em Espanha e procurar submeter esta ao seu autoritarismo, bem como concentrar nas suas mãos a soberania espanhola. Conseguiu, pelo menos, trazer coisas boas, nas palavras de José Agustín González-Ares, esta “constituição” foi “o primeiro instrumento constitucional com que se pretendeu fazer frente ao derrubamento do Antigo Regime”. Trouxe para Espanha a ideia de liberalismo, ao conceder aos cidadãos uma relação de direitos e liberdades anteriormente não consagradas. Neste estatuto permanecia a religião oficial do Estado e o seu carácter confessional. O poder executivo residia no rei, e surgem a figura dos ministérios, do Senado e do Conselho de Estado, órgãos que serviam como conselheiros. O poder legislativo pertenci ao Rei e às Cortes, constituídas pela nobreza, clero e povo, mas a iniciativa legislativa residia no Conselho de Estado. Já o poder judicial era exercido por juízes nomeados pelo rei. Aí se consagra ainda a obrigação da publicidade do processo penal, para evitar injustiças. São suprimidos os tribunais especiais e programada a primeira unidade de códigos, numa tentativa de positivar o direito e estabelecer alguns direitos e deveres. Este estatuto nunca foi aceite como uma constituição, nem pelos autores actuais nem pelos espanhóis da época, que nunca gostaram do carácter ‘afrancesado’ do documento.

A Constituição de 1812 (de Cádis ou La Pepa), elaborada e aprovada pelas Cortes Constituintes convocadas em 1810, foi, como antes dissemos, a primeira constituição espanhola e teve uma grande influência internacional. Fez surgir em Espanha os princípios da soberania popular e a separação de poderes, para além de instaurar um Estado de orientação liberal em Espanha. Este extenso texto previa a soberania nacional, através das Cortes, que detinham o poder executivo. Já o poder legislativo pertencia às Cortes e ao Rei, tendo ele o poder de sanção e promulgação das leis. O poder judicial era exercido pelos tribunais.

Esta Constituição, que teoricamente vigorou até 1837, foi rejeitada por Fernando VII dois anos após a sua entrada em vigor. O monarca dissolveu as Cortes e, com um golpe de Estado, reinou como absolutista em Espanha até 1820. Em 1820, Fernando VII não conseguiu conter a revolta e viu-se forçado a jurar a Constituição de 1812 e voltar a ser um Monarca constitucional. Em 1823, porém, volta a rejeitar a subordinação à Constituição e passa novamente a governar como rei absolutista durante a denominada década ominosa. Com a sua morte, em 1833, a viúva assume a governação do reino até a herdeira ser maior de idade. Em 1934, a Rainha outorgou o Estatuto Real, sem que o mesmo tivesse sido aprovado pelas Cortes. O documento tinha como objectivo atrair os conservadores ao projecto ideológico da Rainha, ao mesmo tempo que aparentava fazer cedências liberais. Mas não garantia liberdades nem voltava a estabelecer a separação dos poderes, mantendo a sua concentração na Rainha, sendo os restantes órgãos meros conselheiros. Este Estatuto foi marcado pela primeira moção de censura, aplicada em 1836, o que levou às eleições de 1837 onde a ala progressista triunfou e elaborou a Constituição de 1837.

A Constituição de 1837 não possuía mudanças radicais em relação à sua anterior, no entanto nota-se o crescente poder da família real, a quem é conferido um poder moderador. Contudo, a exemplo da Constituição de 1812, reconhece vários direitos e liberdades sociais ao povo, incluindo a liberdade de culto.

A pressão progressista, liderada pelo general Espartero, leva à demissão da Rainha regente, deixando-o a liderar um governo provisório. Também ele acabaria por ser obrigado ao exílio por uma facção progressista. Em 1843, José Maria López forma um governo provisório, mas desta vez com o único propósito de convocar eleições para umas Cortes constituintes, que culminaram com a aprovação da Constituição de 1845.

A Constituição de 1845 é marcadamente moderantista, o que torna o governo espanhol estritamente elitista, favorecendo o poder real comparativamente às suas antecessoras.

Seguiram-se períodos de instabilidade de grande rotatividade nos Governos, que culminaria com a formação de um governo O’Donnel e Serrano, presidido pelo segundo, que convocou eleições para novas Cortes Constituintes. Porém, o seu resultado – a Constituição de 1856 – nunca chegou a estar vigente, não tendo sido promulgada pela Rainha.

De 1856 a 1869 continuou a instabilidade política e em Janeiro de 1869 foram convocadas eleições para novas cortes constituintes, após o exílio de Isabel II em França (fruto de uma conduta desprestigiante e irresponsável, que tinha feito com que esta perdesse a sua credibilidade junto do povo). As cortes terminaram os trabalhos em Junho do mesmo ano, com a aprovação da Constituição de 1869.

A Constituição de 1869 acaba definitivamente com o governo autocrata de Isabel II, rainha favorecida com as duas constituições anteriores. Institui em Espanha um regime monárquico constitucional, reconhecendo entre outras coisas o direito à liberdade religiosa, de expressão e de reunião, até então interditas, e reafirma o princípio da divisão dos poderes.

Esta fica conhecida pelo seu carácter jusnaturalista racionalista, por consagrar direitos inerentes à pessoa humana, tais como: direito de associação e liberdade de culto. Os republicanos, contudo, não se conformaram com o conteúdo da Constituição, e a sua pressão, juntamente com o problema cubano de abolição da escravatura, estiveram na origem da 1.ª República. Castelar, num discurso na Assembleia Nacional, afirma o seguinte: “Con Fernando VII murió la Monarquía tradicional, com la fuga de doña Isabel, la Monarquía parlamentaria, com la renúncia de don Amadeo de Saboya, la Monarquía democrática. Nadie há acabado com ella, ha muerto por si misma. Nadie trae la República, la traen todas las circunstancias.”

Surge assim o projeto de Constituição federal de 1873, numa tentativa de aproximação ao modelo norte-americano de organização política. Esta República não havia de durar muito tempo, e em 1874 já a Monarquia tinha sido reinstaurada pelo exército, através do ‘Manifesto de Cánovas’ que definia a Monarquia como ‘Constitucional, hereditaria y representativa’. Em 1875, Afonso XII, legítimo Rei, chegava a Madrid e confirmava Cánovas como primeiro ministro. A Constituição apenas surgiu em 1876. As eleições para as Cortes Constituintes contaram com 60% de abstenção, mas mesmo assim os deputados foram nomeados. A Constituição de 1876 teve a maior longevidade de todas, vigorando até 1931, e não trouxe grandes alterações em Espanha, nem dotou o Estado de mecanismos capazes de enfrentar a ‘questão social’ e as tensões separatistas, salvo o sufrágio universal masculino.

Durante a sua vigência teve lugar o golpe de Estado de Primo de Rivera, em 1923, que instaurou uma ditadura militar, dissolveu as cortes e mandou convocar uma Assembleia Nacional. Com a sua demissão em 1930, foram convocadas eleições legislativas que fundamentaram o poder dos republicanos e com eles a instauração, pela segunda vez, da República.

Esta República apoiar-se-ia na Constituição de 1931, uma Constituição republicana que consagrava a soberania nacional, o sufrágio universal (pela primeira vez universal no verdadeiro sentido da palavra, incluindo o sexo feminino) e o monocameralismo das Cortes, órgão que legislava e controlava o Governo. O Presidente da República nomeava o presidente do Governo e também neste momento que surge o Tribunal de Garantias Constitucionais, que garantia a submissão de todos os poderes, incluindo o legislativo, à Constituição. O liberalismo é simbolizado no direito de criação de sindicatos, liberdade de culto, introdução do divórcio e laicismo nas escolas. Esta constituição foi considerada ‘lamentável’, mas esteve em vigor até à Guerra Civil Espanhola.

Com o fim do “franquismo” e a dissolução das Cortes franquistas em 1977, fruto da Lei para a Reforma Política, regressa a Espanha o modelo de monarquia constitucional, que é consagrado na Constituição de 1978. A Constituição foi ratificada em referendo, sancionada pelo Rei e publicada no Boletim Oficial do Estado de 29 de Dezembro do de 1978.

A Constituição de 1978 foi construída numa atmosfera política e doutrinal muito distinta das suas precedentes históricas. Possui ao todo 169 artigos e segue um modelo económico de tipo neokeynesiano, mas acima de tudo adopta uma organização política baseada na ideia de “uma nova conceção política da própria configuração administrativa e territorial de Espanha”, ou seja, tendo também em conta os povos autónomos dos territórios anexados à Espanha (Espanha consagra-se então “Estado das Autonomias”).

Com esta constituição, oficializa-se a chamada ‘Transição Espanhola’. Estabelece-se uma organização territorial alicerçada na autonomia de municípios, províncias e Comunidades Autónomas, havendo entre todos um princípio de solidariedade. Segundo o artigo 2º da Constituição Espanhola, todas as nacionalidades e regiões componentes do Estado possuem o direito à autonomia. Uma autonomia que, contudo, de acordo com a letra do mesmo artigo, tem de ajustar-se ao pressuposto de que “La Constitución se fundamenta en la indisoluble unidad de la Nación española”.

Texto produzido com os contributos de:

Sofia Albuquerque Sousa Gonçalves (Aluno n.º 2017255460)

Tiago Miguel Pereira Belinha (Aluno n.º 2017268294)

 

Referências bibliográficas

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GONZÁLEZ, Esther, «El Modelo Democrático Español: Marco Institucional, Derechos Humanos y Participación Ciudadana», in La España de la Modernidad – La Constitución de 1978, las libertades civiles y la democracia plural, Editorial Dykinson, Madrid, 2005, pp.  

GONZÁLEZ-ARES FERNÁNDEZ, José Agustín, Introducción al estudio del constitucionalismo español 1808-1975, Andavira Editora, 2003

MARTÍN REBOLLO, Luis, «Veinte Años de Derecho Administrativo Postconstitucional», in 20 Años de Ordenamiento Constitucional – Homenaje a Estanislao de Aranzadi, Aranzadi Editorial, 1999, pp. 239-354

VILLAPALOS SALAS, Gustavo, «La Constitución española de 1978 en el constitucionalismo histórico español», in Administraciones Públicas y Constitución – Reflexiones sobre el XX Aniversario de la Constitución Española de 1978, INAP, Madrid, pp. 37-42

 

Sítios consultados

https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitui%C3%A7%C3%A3o_de_C%C3%A1dis

https://es.wikipedia.org/wiki/Constituci%C3%B3n_espa%C3%B1ola_de_1876

https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitui%C3%A7%C3%A3o_espanhola_de_1931#Cr.C3.ADticas_.C3.A0_Constitui.C3.A7.C3.A3o_de_1931

https://archive.org/stream/encyclopdiabri20chis

http://www.cervantesvirtual.com/

https://www.youtube.com/watch?v=mffesJz8Iq8

https://www.youtube.com/watch?v=xXCLZgEfNbo

 

IIIa Revolução e direito

Em relação ao tema que nos foi proposto, começamos por refletir sobre o artigo 19.° da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), que permite a suspensão do exercício de alguns direitos nos casos de declaração de estado de sítio ou estado de emergência. Este instituto jurídico transmite a noção de que, se todos os direitos fossem garantidos diante de um movimento revolucionário, o caos predominaria.

A admissibilidade de um mecanismo de suspensão do exercício de direitos e garantias previsto pela Constituição que institui um Estado de Direito permite-nos concluir que em momentos revolucionários a suspensão do próprio direito é necessária. A revolução, embora vista negativamente, pode ser considerada, nos factos que envolvem o meio jurídico, a oportunidade que os legitima. Segundo Castanheira Neves: “Será porventura a revolução a oportunidade que os explica, mas não seria fundamento que os legitime”[i].

Arendt afirma que a revolução acontece quando “a história começa subitamente no novo”[ii]; deste modo, a própria legalidade estabelecida pelo Estado de Direito acaba por ter-se como suspensa, uma vez que impera, na revolução, a vontade e a esperança de mudança. É necessário perceber que o conflito provém de um choque de interesses e, como explica Mário Reis Marques, os conflitos não são de todo patológicos[iii], uma vez que servem de palco para a elaboração do tecido social. Sendo assim, embora a revolução se caracterize por uma certa precariedade de princípios jurídicos, ela é a propulsora para que novos valores constitucionais possam emergir; tendo em vista a definição de valores como “uma expressão de dimensões socioculturais pré-constitucionais ou inalienáveis da nova ordem jurídica quando esta pretende ser uma ordem de ruptura com um status quo anterior”[iv].

É no contexto inglês vigente no século XVII, diante do cenário de instabilidade política, que encontramos o “direito de resistência” e o “direito de revolução” como expressões que davam sentido ao “corpo do povo”, como afirma Gomes Canotilho[v]. Surge, então, a partir de Locke, um conceito de poder constituinte embrionário, uma vez que o autor distingue o poder constituinte do povo como modo de alcançar uma nova forma de governo, do poder ordinário do governo e do poder legislativo, como forma de criação de leis.

Apesar de nas sociedades primitivas as relações sociais de poder se basearem na força, o cenário não é significantemente distinto quando falamos do Estado Westfaliano, uma vez que ele legitimava o “direito de guerra”. Somente a partir da Carta das Nações Unidas o “direito de guerra” foi efetivamente extinto, com exceção de situações de defesa[vi]. A Carta das Nações Unidas apresenta-se, no plano jurídico internacional, como um instrumentos de resolução pacífica de conflitos.

Portanto, a função pacificadora e a função de garantia de liberdades individuais inerentes ao direito complementam-se, visto que o direito substituiu o “fazer justiça pelas próprias mãos”, ou seja, substitui o binômio ofensa-vingança pelo binômio delito-pena[vii], instituindo princípios de resolução pacífica de conflitos. Além disso, o direito procura garantir a cada indivíduo a sua esfera de atuação, desde que a mesma não seja conflitante com o tecido social. “No conflito entre o fraco e o forte, a liberdade oprime e o direito liberta”[viii], ou seja, o direito pode ser considerado o instrumento primordial de liberdade no que condiz com o momento revolucionário, afinal, diante das desproporcionalidades exercidas por cada Estado ou pelos indivíduos que participam de uma revolução, o direito, pautado no ideal de justiça e igualdade, é o aparato que valoriza as diferenças e garante a igualdade, visto que “Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”[ix].

Texto produzido com os contributos de:

Maria Eduarda de Toledo Chiarelli (Aluno n.º 2017124644)

 

[i] António CASTANHEIRA NEVES, «A revolução e o direito: a situação de crise e o sentido do direito no actual processo revolucionário», Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1976, p. 23.

[ii] Hannah ARENDT apud CASTANHEIRA NEVES, O direito e a revolução… ob. cit., p. 24.

[iii] Mário REIS MARQUES, Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2007, p. 15.

[iv] Suzana TAVARES DA SILVA, Direito Constitucional I, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra 2016, p. 93.

[v] José Joaquim GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 2003, pp.72.

[vi] Francisco FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Internacional Público, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 47.

[vii] Mário REIS MARQUES, Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2007, p. 86.

[viii] Henri DOMINIQUE LACORDAIRE apud Mário REIS MARQUES, Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2007, p. 88.

[ix] Boaventura DE SOUSA SANTOS, Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003, p. 56.

 

III.b  Revolução e direito

O conceito de revolução, entendido como mudança rápida e profunda da ordem estabelecida, coaduna-se com a noção de direito – suscetível às mudanças histórico-sociais – caracterizada por uma contínua renovação. No âmbito do Direito Constitucional, este atributo adquire uma relevância ainda maior, na medida em que o constitucionalismo abrange não só aos momentos de vigência constitucional, mas também aos seus predecessores: os momentos constituintes e os iniciáticos e pioneiros momentos pré-constitucionais.

Ora, parece-nos que a transição de um momento pré-constitucional para um momento constituinte se assume, hoje, como prioridade para os independentistas catalães, importando esclarecer a sua legitimidade para instituir uma nova ordem constitucional. Para o efeito, serão analisados os principais elementos e protagonistas da atual ‘questão catalã’, atendendo sempre à já mencionada dialética existente entre os conceitos de direito e de revolução. Estamos diante de uma mera deriva inconstitucional ou, naqueloutro sentido, será o processo de independência em curso o legítimo fundamento de um novo momento e poder constituinte?

Cingindo-nos aos principais argumentos de cada uma das partes em confronto, verificamos que, à parte dos basilares, reiterados e bilateralmente discutíveis argumentos históricos, culturais e económicos, o núcleo fundamental da discussão se centra, actualmente, na dicotomia do momento presente: um embate entre aquele que, na ótica dos membros da Generalitat, constitui já um momento pré-constitucional e a defesa acirrada, por parte do Estado espanhol (Governo, Senado, Coroa, Tribunal Constitucional, forças de segurança, inter alia) da vigência constitucional da Constituição Espanhola de 1978.

Por um lado, os separatistas sustentam a sua atuação nos sucessivos mandatos que o povo catalão lhes tem conferido nas urnas, invocando continuamente o caráter soberano e, portanto, vinculativo dos resultados eleitorais. Enquanto genuína expressão da vontade popular, os resultados das eleições autonómicas de 2015 e do referendo à autodeterminação realizado a 1 de Outubro de 2017 sobrepõem-se a quaisquer disposições administrativas, legais ou até constitucionais. Para além desta concepção do escrutínio eleitoral como autêntico momento pré-constituinte, os partidários da independência apontam ainda o caráter democrático de todo o processo e a vinculação da Espanha as inúmeras convenções internacionais que salvaguardam o direito dos povos à autodeterminação, entre as quais se destaca a Carta das Nações Unidas (art.1.º/2).

Por sua vez, o Estado Espanhol, primordialmente através do Governo e do Tribunal Constitucional, não hesita em classificar todo o processo como inconstitucional, ‘alheio às regras do jogo’, nada mais que um golpe de estado que atenta contra a integridade territorial do país. Reportando-se continuamente à Constituição Espanhola de 1978 (art.2.º), a reação das autoridades centrais atingiu o seu expoente máximo, não só com a discutível mobilização das forças de segurança junto das urnas, no dia 1 de Outubro, mas também, e sobretudo, com a inédita aplicação do artigo 155.º da Constituição Espanhola. A suspensão da autonomia catalã – consagrada no Estatuto de autonomia da Catalunha desde 1979 – fez aumentar o sentimento de coerência dos que apontam traços franquistas ao executivo de Mariano Rajoy, reflectidos também na destituição de vários membros do executivo regional. Acresce que a prisão de uma boa parte destes dirigentes, decretada pelo tribunais, que levou os restantes ao exílio em Bruxelas – entre os quais o agora destituído Presidente da Catalunha, Carles Puigdemont – também contribui para a imagem negativa do papel do Estado espanhol no seu conjunto institucional. Apenas a ordem constitucional dominante determinará, pois, o estatuto histórico dos protagonistas: traidores à pátria ou heróis da independência. A crescente tensão favorece os catalanistas, acentuando a ideia de que o poder constituinte, expresso pelo povo em momentos de evidente ruptura, se deve sobrepor ao poder constituído, incapaz de reverter as dinâmicas sociais senão pela força.

Destarte, no horizonte temporal ditado pela aplicação do artigo155.°, as eleições legislativas regionais antecipadas para 21 de Dezembro de 2017 afiguram-se como o teste definitivo à real vontade dos catalães. Verificando-se nova vitória independentista, esta teria um valor reforçado, por se tratar da reafirmação da vontade popular através de um ato eleitoral imposto e supervisionado pelo Estado Espanhol. Fracassado o objetivo de repor a ordem constitucional, Madrid veria reduzida a legitimidade para invocar inconstitucionalidades.

Conclui-se, pois, que somente o resultado do escrutínio previsto para 21 de dezembro de 2017 determinará os sempre imprevisíveis passos a seguir. Até lá, quaisquer referências a um eventual procedimento constituinte são meras especulações, contanto que a predileção catalã por referendos deixe antever uma possível Assembleia Constituinte não soberana.

Texto produzido com os contributos de:

José Edgar Alheia Cabreira (Aluno n.º 2017261021)

 

Referências bibliográficas

  • GOMES CANOTILHO, J.J, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pp 57-74.
  • MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis, ª ed., Almedina, Coimbra, 2017.
  • TAVARES DA SILVA, Suzana, Direito Constitucional I. Lições actualizadas e adaptadas às necessidades formativas do Espaço Europeu de Ensino Superior. Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016, pp 17-31.

 

Documentos consultados

  • BOLETÍN OFICIAL DEL ESTADO. ECLI:ES:TC:2017:114

Disponível em: <http://hj.tribunalconstitucional.es/docs/BOE/BOE-A-2017-12206.pdf > Acesso em: 7 de novembro de 2017

  • Estatut de Autonomia de 2006. Ratificado por referendo a 18 de junho de 2006

Disponível em:<http://web.gencat.cat/es/generalitat/estatut/estatut2006/ > Acesso em: 6 de novembro de 2017

  • DIARI OFICIAL DE LA GENERALITAT DE CATALUNYA. LEY 19/2017, de 6 de septiembre, del referèndum de autodeterminación

Disponível em:.<http://portaldogc.gencat.cat/utilsEADOP/PDF/7449A/1633376.pdf > Acesso em: 7 de novembro de 2017

  • Constitución Española de 1978. Ratificada por referendo a 6 de dezembro de 1978

Disponível em:<http://www.congreso.es/docu/constituciones/1978/1978_cd.pdf> Acesso em: 6 de novembro de 2017.

  • GUINDAL, Carlota (LA VANGUARDÍA). Los cuatro delitos belgas que deberá analizar el juez para la entrega de Puigdemont

Disponível em: http://www.lavanguardia.com/politica/20171108/432708700895/entrega-puigdemont-espana-delitos-codigo-penal-belga-euroorden.html Acesso em: 8 de novembro de 2017

  • REDACCIÓN, LA VANGUARDIA. Miles de personas piden la liberación de presos en Sant Jaume |

Disponível em: <http://www.lavanguardia.com/politica/20171108/432717480259/miles-de-personas-libertad-consellers-barcelona-cataluna.html> Acesso em: 8 de novembro de 2017

  • MARTÍNEZ-FORNÉS, Almudena (ABC ESPAÑA). El Rey: «En Cataluña ha habido un inaceptable intento de secesión»

Disponível em: <http://www.abc.es/espana/casa-real/abci-cataluna-habido-inaceptable-intento-secesion-201710202037_noticia.html> Acesso em: 8 de novembro de 2017

  • ABC ESPAÑA. Puigdemont reprocha a la UE que apoye a Rajoy y pregunta si aceptará los resultados del 21D.

Disponível em: <http://www.abc.es/espana/abci-puigdemont-reprocha-apoye-rajoy-y-pregunta-si-aceptara-resultados 201711072011_noticia.html?#ns_campaign=mod-outbrain&ns_mchannel=abc.es&ns_source=organico&ns_linkname=desktop-tablet&ns_fee=AR23_1fila> Acesso em: 8 de novembro de 2017

 

IV – O artigo 155 da Constituição Espanhola

Espanha, à semelhança de Portugal, é um país dotado de uma constituição escrita e rígida, que está em vigor desde 1978 (Constituição de 1978 na sua versão original) e que é consequência de um processo histórico (ver supra) denominado Transição Espanhola[i].

Texto actual do artigo 155[ii]:

  1. Si una Comunidad Autónoma no cumpliere las obligaciones que la Constitución u otras leyes le impongan, o actuare de forma que atente gravemente al interés general de España, el Gobierno, previo requerimiento al Presidente de la Comunidad Autónoma y, en el caso de no ser atendido, con la aprobación por mayoría absoluta del Senado, podrá adoptar las medidas necesarias para obligar a aquélla al cumplimiento forzoso de dichas obligaciones o para la protección del mencionado interés general.
  2. Para la ejecución de las medidas previstas en el apartado anterior, el Gobierno podrá dar instrucciones a todas las autoridades de las Comunidades Autónomas.

Conteúdo e sentido do artigo:

O artigo em análise prevê um mecanismo de controlo da atividade das Comunidades Autónomas[iii], de caracter excepcional e extremo, aplicável em situações igualmente excepcionais e extremas, como o incumprimento de obrigações impostas pela Constituição, por leis ou o cumprimento das mesmas de forma a atentar gravemente contra o interesse de Espanha.

O conteúdo deste artigo constitucional está baseado no artigo 37 da Lei Fundamental de Bonn[iv] e estabelece como pressupostos para o respectivo accionamento, a existência de um facto que atente de forma grave contra o interesse de Espanha, um requerimento prévio enviado ao Presidente da Comunidade Autónoma e, por último, a necessidade de que as medidas sejam aprovados por maioria absoluta[v] do Senado.

Deste modo, o governo pode impor-se e intervir no autogoverno regional quando uma comunidade autónoma não cumpre as suas obrigações[vi].

Não existiam precedentes da aplicação do artigo em análise nem outros semelhantes até à Declaração de Independência da Catalunha[vii].

No seguimento da aplicação do artigo 155 da CE, o governo espanhol destituiu o presidente regional e o seu gabinete e convocou novas eleições, passando assim a existir controlo do governo central sobre o sistema público regional até restituição da normalidade.

Texto produzido com os contributos de:

Sara Marina Tomé Fernandes (Aluna N.º 2017275405)

 

Referências bibliográficas:

GARCÍA MUÑOZ, Óscar, La constitución española en lectura fácil, Centro Español de Documentación sobre Discapacidad, Madrid, 2015.

GONZÁLEZ HERNÁNDEZ, Esther, «El artículo 155 CE y la LO 15/2015, de 17 de octubre de reforma de la LOTC: ¿ineludible reciprocidad o círculo perverso?», Teoria y Realidad Constitucional, vol 37, UNED, Madrid, pp. 529-557. 

MUÑOZ ARNAU, Juan Andrés, Algunas cuestiones sobre el desarrollo del constitución española de 1978, Dykinson S.L., Madrid, 2013.

http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/sinopsis/sinopsis.jsp?art=155&tipo=2

 

[i] Que converteu o regime franquista numa monarquia constitucional.

[ii] O artigo 155 localiza-se no Título VIII “De la organización territorial del estado” no Capítulo Terceiro “De las comunidades autónomas”. Espanha está organizada em territórios que contém as suas próprias instituições de governo. As comunidades autónomas correspondem a uma forma de autogoverno regional (artigo 137CE).

[iii] Sobre as formas gerais de controlo das actividades das comunidades autónomas v. artigo 153C.

[iv] Lei fundamental da República Federal da Alemanha.

[v] A maioria absoluta exige a aprovação por metade dos membros do Senado em efectividade de funções mais um.

[vi] Exemplo: O governo pode obrigar as comunidades autónomas a cumprir com as leis ou pode impedir que as comunidades autónomas actuem contra os interesses de todos os cidadãos.

[vii] A questão catalã: O governo catalão anunciou um referendo, que seria realizado em Novembro de 2014, onde seria abordada a questão da independência catalã. O Tribunal Constitucional Espanhol declarou-o inconstitucional após ser questionado pelo governo central. O mesmo acabaria, contudo, por se realizar em 9 de Novembro de 2014 como consulta não vinculativa.

Em Novembro de 2015, com a eleição do novo governo catalão, foi aprovado o inicio do processo de independência. No ano seguinte, o novo presidente, Carles Puigdemont, anunciou um referendo vinculativo sobre a independência. Apesar de ser considerado ilegal pelo governo espanhol e pelo Tribunal Constitucional, o referendo  realizou-se em 1 de Outubro de 2017.

Com base nesse resultado, em 27 de Outubro de 2017, o Parlamento da Catalunha aprovou uma resolução que instituiu a República Catalã Independente. O mesmo documento foi então votado e aprovado mesmo não tendo a votação valor legal.

Posteriormente, o primeiro-ministro Espanhol, Mariano Rajoy, anunciou a aprovação pelo Senado, ao abrigo do disposto no artigo 155 da constituição espanhola, da medida que destituía o presidente catalão Carles Puidemont e o seu gabinete, convocando novas eleições regionais para o dia 21 de Dezembro de 2017.

 

Documentos jurídicos relevantes do processo da Catalunha

05.04.2018 – Decisão do Tribunal Alemão do Land de Schleswig-Holstein sobre a extradição de Puigdemont

21.03.2018 – Decisão do Tribunal Supremo de Espanha que acusa os dirigentes políticos catalães de rebelião e sumaria o processo.

27.01.2018 – Decisão do TC pela qual se suspende a “resolución del Presidente del Parlamento de Cataluña por la que se propone la investidura de don Carles Puigdemont i Casamajó como candidato a Presidente del Gobierno de la Generalitat de Cataluña, publicada en el “Boletín Oficial del Parlamento de Cataluña”, núm. 3, de 23 de enero de 2018, y la resolución del Presidente del Parlamento de Cataluña de fecha de 25 de enero de 2018, por la que se convoca sesión plenaria el 30 de enero de 2018, a las 15:00 horas”.

16.11.2017 – Sentença do Pleno do TC que declara a inconstitucionalidade e a nulidade da Lei do Parlamento da Catalunha n.º 20/2017, de 8 de Setembro,
denominada «de transitoriedad jurídica y fundacional de la República»,
que pretende «dar forma jurídica, de forma transitoria, a los elementos
constitutivos básicos del nuevo estado» resultante da declaração unilateral
de independência pelo Parlamento de Catalunha

3.11.2017 – Decisão do Juzgado central de instruccion de Madrid, que ordenou o mandado de detenção europeu para Carles Puigdemon;

3.11.2017 – Decisão do TC que declara a inconstitucionalidade e a nulidade (i) da lei complementar à lei do referendo, do (ii) decreto que o convoca e (iii) da Resolução do Parlamento da Catalunha que nomeara os membros do colégio eleitoral;

3.11.2017 – Decisão do TC que não admite o recurso apresentado pela Generalitat contra as medidas do 155 da Constituição antes da sua aprovação pelo Senado;

2.11.2017 – Decisão do Juzgado central de instruccion de Madrid, que ordenou a prisão preventiva de diversos membros do Governo da Catalunha;

27.10.2017 – Decisão do Senado que aprova as medidas requeridas pelo Governo ao abrigo do artigo 155 da Constituição Espanhola;

17.10.2017 – Decisão do TC que declara a inconstitucionalidade e a nulidade da Lei do Referendo (Ley 19/2017);

10.10.2017 – Declaração de independência da Catalunha

5.10.2017 – Decisão do TC que admite o recurso de amparo do Partido Socialista da Cataluña e suspende a convocatória do pleno do Parlamento da Cataluña previsto para valorar os resultados do referendo;

19.09.2017 – Decisão sobre a nulidade dos actos que permitiram a aprovação da Lei do Referendo (Ley 19/2017);

13.09.2017 – Decisão do TC que fixa o prazo de 48h para que os membros da comissão eleitoral do referendo informem o tribunal das acções adoptadas para suspender aquele acto

12.09.2017 – Decisão do TC que suspende e admite o recurso de inconstitucionalidade da lei de transição jurídica e fundacional da República da Catalunha (Ley 20/2017);

8.9.2017 – Ley 20/2017, de 8 de septiembre, de transitoriedad jurídica y fundacional de la República;

7.9.2017 – Decisão do TC que admite (i) o recurso de inconstitucionalidade contra a Lei do referendo (Ley 19/2017), (ii)  a impugnação da Resolução 807/XI do Parlamento da Cataluña que designa os membros da comissão eleitoral e (iii) o decreto da Generalitat que se aprova as normas para a celebração do referendo;

7.9.2017 – Parecer do Conselho de Estado sobre a interposição do recurso de inconstitucionalidade da Lei do Referendo  (Ley 19/2017);

6.9.2017 – Ley de Cataluña 19/2017, de 6 de Setembro, denominada “del referéndum de autodeterminación”

16.08.2017 – O TC não admite o recurso apresentado pela Generalitat contra a suspensão cautelar da reforma do Regulamento do Parlamento da Catalunha

31.07.2017 – Decisão do TC que admite o recurso de inconstitucionalidade contra o artigo 135.º da reforma do Regulamento do Parlamento da Catalunha

27.07.2017 – Reforma parcial do Regulamento do Parlamento da Catalunha aprovado em 27.07.2017

2.12.2015 – Decisão que declara a inconstitucionalidade da Resolução 1/XI do Parlamento da Catalunha

9.11.2015 – Resolução 1/XI do Parlamento da Catalunha.

 

Documentos jurídicos para compreender o processo da Catalunha